Debate: Há demasiada regulação na Saúde?

A regulação existe e é necessária em qualquer sector de actividade para balizar os limites do que é ou não ético e/ou aceitável de comercializar, promover ou informar. Contudo, há sectores onde a regulação é mais apertada do que noutros. A Saúde, e cingindo-nos apenas à vertente da comunicação, será um desses casos. Mas será que existe demasiada regulação neste sector? E até que ponto é ou não benéfica para o consumidor final, o doente? Este foi o tema que deu o mote ao mais recente pequeno-almoço debate do sector da Saúde, promovido pela Marketeer.

Na opinião dos participantes, não só existe em demasia, como a regulação, em grande parte, «não está actualizada», no sentido em que «não acompanhou a evolução de um mercado que é uma fusão de diferentes sectores». No que diz respeito à comunicação digital, por exemplo, continuam a aplicar-se as mesmas regras que se aplicam em relação aos meios tradicionais. Só agora começam a aparecer recomendações de boas práticas, inspiradas no que se faz noutros países, quando todas as companhias já comunicam no digital há vários anos.

Este é um tema que transcende as várias áreas da Saúde, como dão conta os testemunhos à volta da mesa. As empresas farmacêuticas, por exemplo, estão «proibidas de comunicar [medicamentos] probióticos, mas vemos todos os dias na televisão uma série de marcas, como as de iogurtes, a falar de probióticos», constatam. Mesmo quando comunicam medicamentos de venda livre, as marcas são obrigadas a fazer acompanhar o anúncio de uma frase legal que, por vezes, é pouco ou nada inteligível – por exemplo, nos anúncios na rádio.

No caso das seguradoras, hospitais ou laboratórios, a comunicação não pode ser tão direccionada ao paciente quanto seria desejável. «Por exemplo, para uma pessoa que tem uma doença oncológica, poderíamos oferecer alguns produtos mais específicos, mas não o podemos fazer. Temos de comunicar de forma mais lata, para um grupo de pessoas. Muitas vezes, queremos ir ao foco, direccionar o doente para o diagnóstico, para o tratamento, para o medicamento, e não podemos.» Porquê? «Porque é considerado incentivo ao consumo», explicam.

Quem sai prejudicado nesta equação, dizem em uníssono, é o doente, que acaba por não ser devidamente informado. «Perdeu-se um bocadinho o foco. Acaba por ser mais castrador e inibidor do que educador, e o paciente não está a ser protegido. Está-se a cumprir a lei só porque sim. As pessoas não estão mais informadas, não lêem as letras pequenas que somos obrigados a colocar nos anúncios», lamentam. «Se todos falamos cada vez mais em prevenção, como podemos fazê-lo se não nos é permitido tocar numa série de pontos, mesmo em termos de questões clínicas? Às tantas, quando vamos ver, retirámos tudo e a essência do que íamos dizer, perde-se. Acabamos todos a dizer o mesmo», reiteram.

Ana Allen Lima (CUF), Madalena Albuquerque (Altice Cuidados de Saúde), Maria do Carmo Silveira (Médis), Maria Perdigão (Generali Tranquilidade), Marta Cunha (Germano de Sousa), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Solange Gregório (Saúde Prime), Vera Grilo (Medinfar) e Victor Almeida (Lusíadas Saúde) foram os participantes no pequeno-almoço debate, que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.

Ainda no mesmo tópico, e de acordo com os responsáveis, a regulação existe, mas está «muito pensada para os grandes players e, sobretudo, os incumbentes ou tradicionais no mercado ». Isso resulta em que a regulação nem sempre é cumprida por todos. No sector hospitalar, por exemplo, há casos de entidades que colocam os logótipos das principais marcas do sector privado nas suas redes, sem qualquer tipo de autorização.

Nesse sentido, é quase como se «houvesse os alunos bem e mal comportados». E há até quem arrisque outra analogia: «Estamos numa estrada com três vias. Está uma fila grande e nós estamos todos na fila. Mas há sempre quem, não precisando, vai para a faixa de emergência e passa à frente de todos. Não é mais inteligente que nós, simplesmente não está a cumprir e nós estamos.» Por outras palavras, «há excesso de regulação, mas também há excesso de tentar contornar a regulação. Somos um bocado vítimas da “chico-espertice” de alguns», reforçam, acrescentando que «tem de se encontrar mecanismos para fazer cumprir a regulação».

PELA INTEGRAÇÃO NA SAÚDE

Segundo os responsáveis dos mais variados quadrantes da Saúde, o problema da regulação é também, em certa medida, o espelho da falta de integração de um sector que está dividido. O que serviu de ponte, durante o debate, para um tema que tem sido muito discutido nos últimos anos, o da falta de um verdadeiro “Sistema Nacional de Saúde”, onde os sectores público e privado se complementem verdadeiramente, com integração de serviços. Porque a verdade, recordam os participantes, é que os últimos anos, sobretudo desde a pandemia de Covid-19, mostraram que a sustentabilidade do SNS (Serviço Nacional de Saúde) estaria ainda mais em causa sem o SPS (Serviço Privado de Saúde).

«Enquanto não houver um espírito de cooperação, enquanto não percebermos que todos precisamos de todos, nunca vai funcionar», alertam. E porque é que não há essa união? «Por duas razões: a primeira é histórica, porque temos ainda uma cultura do SNS gratuito e a que todos temos acesso, como uma torneira aberta “ad eternum” – o que, hoje, não é verdade; e, por outro lado, uma razão cultural, porque somos um povo muito pouco cooperativo, de fazer coisas em conjunto », explanam os responsáveis.

Mas há ainda uma terceira razão de cariz político ou ideológico: a ideia que ainda persiste de que «o privado é uma saúde de Direita e o público é uma saúde de Esquerda». A Saúde é uma área que deve transcender as ideologias políticas, defendendo os responsáveis ouvidos pela Marketeer que, assim como o Presidente da República tem um Conselho de Estado onde têm assento as várias forças políticas, também o ministro da Saúde deveria ter um conselho onde se sentassem os sectores social, privado e público.

Outra hipótese, adiantam, passaria por começarmos a ter no sector público pessoas com background e provas dadas no sector privado, com uma outra visão, que pudessem passar a «gerir o sector como se gere uma empresa». Um pouco o que aconteceu num passado recente com as PPP (Parcerias Público- Privadas) nos hospitais, com «evidências inequívocas de que os projectos foram bem feitos, por todos» os grupos.

Em suma, defendem, é urgente que haja uma integração dos serviços públicos no sector privado e no social, com vista a resolver o problema das listas de espera, bem como os problemas estruturais ou de médio-longo prazo que o sector enfrenta. Mas, para tal, o Estado tem de pagar «o justo valor pelos actos médicos, porque os privados não podem é perder dinheiro, porque não são a Santa Casa da Misericórdia», ressalvam os intervenientes.

O que está em causa, lembram, é a sustentabilidade, não apenas do SNS, mas de todo o ecossistema de Saúde. As vendas de seguros de saúde estão a crescer, mas a sinistralidade também está a disparar, o que faz com que as coberturas estejam a encolher e os prémios a aumentar gradualmente. «A actualização de preços que tem sido feita nos últimos três-quatro anos é transversal ao sector. Começando de cima, quem paga o seguro está a pagar mais de prémio, porque aumentou a frequência e a sinistralidade. Os hospitais, laboratórios e farmacêuticas tiveram que actualizar preços, porque havia casos onde os preços não eram mexidos no sector segurador há 10 anos», explicam os responsáveis.

Além disso, os custos operacionais também subiram exponencialmente, em todas as áreas, e os prestadores de saúde tiveram que fazer os respectivos ajustes nas tabelas de preços. Mas esta tendência, alertam, vai ter de ter um fim: «Não vamos conseguir indefinidamente actualizar preços, porque quem paga o seguro, mais cedo ou mais tarde, vai deixar de o conseguir pagar.» Para já, e apesar do aumento generalizado dos prémios, os níveis de retenção nos seguros de saúde têm-se mantido, o que comprova que «há uma dependência do privado neste momento».

REGISTO DE SAÚDE ELECTRÓNICO

Relacionado com o tema da integração no sector da Saúde, o Governo confirmou recentemente que está a trabalhar na criação do Registo de Saúde Electrónico (RSE), que permitirá a partilha de dados de saúde entre os sectores público, privado e social. A decisão surgiu na sequência da directiva europeia sobre o Espaço Europeu de Dados em Saúde.

De acordo com o site dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), o Registo de Saúde Electrónico visa “reunir informação essencial de cada cidadão para a melhoria da prestação de cuidados de saúde”. Trata-se de um processo clínico digital único que será “construído por dados clínicos recolhidos electronicamente para cada cidadão e produzidos por entidades que prestam cuidados de saúde”. Na prática, as instituições de saúde públicas, privadas e do sector social vão poder passar a aceder, em qualquer momento, ao processo clínico completo de cada utente.

À volta da mesa, as opiniões convergem na importância desta medida, que representa «uma grande oportunidade para conseguirmos realocar recursos do SNS, juntamente com os privados e as seguradoras».

Não obstante, os responsáveis inquiridos pela Marketeer colocam algumas dúvidas sobre a sua implementação e execução prática. «Será [uma medida] excepcional se houver um trabalho depois da recolha de dados. Mas, neste País, o que costuma acontecer é que a informação está toda disponível, mas depois não é trabalhada. E depois não há vantagem nenhuma adicional, nem para o doente, nem para o médico, porque ou este tem restrições de poder aconselhar seja o que for, ou a acessibilidade vai continuar a ser um problema», notam os participantes.

Certo é que, primeiro, tem que haver essa transacção e integração de informação relativa aos doentes. E isto não vai ser imediato; terá que haver um processo de aprendizagem. Quanto ao desafio técnico, ou seja, sobre a análise e processamento da informação, alguns responsáveis à volta da mesa apontam a solução: «Vem aí uma revolução tecnológica. Quem é que vai olhar para a informação? A Inteligência Artificial. É um tema que ficará resolvido em cinco anos, talvez nem tanto.»

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Saúde”, publicado na edição de Agosto (n.º 337) da Marketeer.

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