Debate: Legislação, a quanto obrigas…

Os players do sector segurador querem fazer mais e melhor em prol dos seus clientes. Mas não têm a vida facilitada em muito daquilo que procuram inovar e fazer diferente. A culpa, não raras vezes, recai na legislação, que não está a acompanhar as necessidades do mercado, impedindo que soluções que podiam ser disruptivas cheguem ao cliente final.

Começando por algo que à primeira vista é simples, mas que rapidamente se complica, o termo usado para designar aquilo que os clientes têm de pagar às seguradoras: prémio. Por vontade das seguradoras há muito que já não se falava em prémio e sim em preço. É uma mudança que várias seguradoras já coagitaram, mas a resistência começa logo na legislação. «As apólices falam em prémio, a regulamentação fala em prémio, os clientes pagam o prémio. Qualquer termo que se tente aligeirar, para ser mais perceptível pelo cliente, esbarra sempre no compliance e na legislação», escuta-se à mesa, no mais recente pequeno-almoço sectorial onde se reuniram, no Vila Galé Opera, Afonso Barata (Mudum Seguros), Marta Vicente (Ageas), Raquel Almeida (CA Vida), Rita Leotte (Mudum Seguros), Rodrigo Esteves (MDS) e Susana Fava (CA Vida).

Mas há mais boas intenções que insistem em não passar disso mesmo. Já houve tentativas do lado da distribuição de criar um fee anual para os clientes que, desta forma, ficariam com os seus seguros todos garantidos (casa, carro, saúde, cão, empregada doméstica). Nas mãos do distribuidor ficaria a responsabilidade de gerir esses seguros com as diferentes companhias. Numa primeira instância havia que fazer coincidir as datas de vencimento de cada um deles… O sector da distribuição anda a lutar por isso porque acredita que isso era prestar «um serviço fantástico aos clientes», que escusavam de ter de gerir recibos diferentes para cada seguro, em companhias diferentes, com pessoas diferentes. O cliente poderia assim escolher um broker que ficaria responsável por gerir os seus seguros. «É uma ideia gira, mas que por agora é só uma ideia», comenta-se entre os convivas. Fazer isto numa mesma seguradora parece não ser complicado, mas há que não esquecer que, por vezes, as seguradoras têm estruturas separadas no ramo vida e no ramo não vida. «E sendo duas empresas diferentes, ainda que do mesmo grupo, não pode ir um recibo só para o cliente. A ideia é boa, mas a parte operacional não é simples», lembra-se. Mas outra voz esclarece: «Operacional e informaticamente tudo se faz. O problema é que batemos mesmo com problemas de regulamentação e compliance.»

O problema deste sector, dizem, colocando o dedo na ferida, é que as seguradoras são focadas no cliente, na intenção e na comunicação, mas depois não há foco no cliente na legislação. «Até em termos de comunicação, às vezes, é necessário salvaguardar tanta coisa que, para o cliente, ler tudo não é de fácil entendimento.» Por isso se defende, entre os participantes na conversa, que esta maneira de se trabalhar não está a ajudar na literacia do cliente, nem a simplificar aquilo que está a ser dito. «Estamos a trazer muita informação, mas que o cliente não entende. Não está numa linguagem entendível.»

Todos os avanços com o desenvolvimento tecnológico e as relações entre seguradoras e clientes parecem estar muito à frente daquilo que a legislação está preparada para abraçar. Por um lado, as seguradoras, através da tecnologia, facilitam a contratação de produtos, por outro, em algumas situações de sinistro, o tribunal pede o original assinado, obrigando a fazer guarda física de documentos durante anos e anos. «A tecnologia existe para facilitar e permitir fazer tudo de forma mais ligeira, mas as obrigações legais não o permitem.»

Entre os participantes ouve-se o desabafo: «Estamos a montar um projecto e a parte mais complicada está a ser a forma como é que vamos gerir os consentimentos. Em que momento pedimos os consentimentos. Ou seja, estamos a perder tempo não no core do negócio e na comunicação, mas no que está ao lado.» Desenhar produtos mais aproximados das necessidades dos clientes acaba por ser uma tarefa simples – confidenciam – até com a ajuda da tecnologia. Mas a vontade, às vezes, esbarra em outras questões como a do consentimento que impacta (muito) na comunicação.

FAZ SENTIDO O SEGURO AUTOMÓVEL?

A legislação obriga, mas fará sentido continuar a existir nos moldes em que existe, numa altura em que as pessoas se movimentam diariamente numa panóplia de diferentes meios de transporte pessoais e partilhados?

«Já todos pensámos que isto um dia vai evoluir e vamos deixar de ter o seguro do automóvel e passamos a segurar, única e exclusivamente, a pessoa, esteja ela num carro, em casa, na bicicleta ou na trotinete. A questão é que, neste momento, a legislação não permite que nós possamos dar uma solução única. Até podemos pensar nessa solução, sim, mas o seguro do automóvel continua a ser obrigatório.»

À luz do que é feito hoje, o preço a pagar pelo seguro do automóvel é calculado tendo em conta a idade do detentor do seguro, a antiguidade da sua carta de condução e a área de circulação. Mas o tema do seguro automóvel ligado à pessoa é um dos que recorrentemente está em cima da mesa, até pela forma como está a mudar a relação das pessoas com a mobilidade (não é só com os carros). «Mas em Portugal, como no resto da Europa (excluindo Inglaterra), não conseguimos ter um seguro que cubra os vários carros que eu conduzo e os outros modos de mobilidade como trotinetes ou bicicletas.» É inegável que a pessoa não conduz dois veículos ao mesmo tempo, mas isso não a dispensa da obrigatoriedade dos seguros dos mesmos. Isto porque os danos próprios do carro são do carro. Um mesmo proprietário pode ter um carro que valha 10 mil euros e outro que valha 50 mil. E pode escolher ter esses dois carros com coberturas também diferentes, escolhendo a protecção que quer para os seus dois carros. E caso esteja a guiar qualquer um dos carros, terá seguro de responsabilidade civil.

Entre os convivas há uma voz que lembra que é capaz de ser mais eficiente obrigar cada carro a ter seguro para protecção de terceiros do que tê-lo na pessoa, individualmente, e dizer que pode conduzir vários carros. «Se a pessoa que está a conduzir não tem seguro, já podemos ter uma maior probabilidade de não estar a proteger o terceiro. E isso é a filosofia que faz mais sentido ser por veículo e não por pessoa», explica. Outra voz sugere que quem tivesse carta de condução poderia ser obrigada a ter um seguro. E o carro teria então outro seguro, ou seja, haveria dois seguros. Mas seria de esperar o levantamento popular de todas as pessoas que têm carta, mas nunca conduzem. Que, numa escala muito maior, seria o equivalente a ter o carro parado na garagem e não andar com ele, mas ter de ter seguro.

No entanto, para estes carros que andam muito pouco, também já há soluções como o seguro por dias e o seguro ao quilómetro, conseguindo-se fazer a gestão através de app. Em França está-se a estudar a possibilidade de os carros saírem de fábrica já com seguro integrado. As seguradoras começam a negociar com o fabricante em vez de negociarem com o cliente. O cliente quando compra o carro já compra o seguro. E a pessoa não troca de carro por não gostar da seguradora ligada à marca. É o seguro do carro e da responsabilidade civil e danos próprios do carro, e, independentemente de quem o conduz, está a cobrir os danos que aquele carro provoca. É assim que está organizado o seguro na Europa. São os danos que o carro provoca e não os danos que a pessoa que conduz provoca. Mesmo que o carro mude de dono, desde que o dono continue a pagar o seguro, aquele carro continua com seguro.

Uma alteração destas pode vir a mexer muito no mercado porque as marcas automóveis estão organizadas em grandes grupos multinacionais, que farão os acordos com multinacionais dos seguros. Certamente não portuguesas. «E depois veremos os seguros a crescer enormemente nos EUA com todas as vendas que foram feitas na Europa.» Aí depois há que ter em consideração as legislações dos diferentes mercados e encontrar soluções. Inegável é que a avançar vai mexer muito com o mercado na parte dos veículos novos. Mas o novo dono poderá fazer outro seguro, claro.

No fundo, não será muito diferente do que acontece quando se compra um electrodoméstico numa Fnac ou numa Worten, que vem já com o seguro e garantia de três anos, mas a pessoa não faz ideia de qual é a seguradora.

ENTRAVES À INOVAÇÃO

Que o sector regulador é muito regulado não restam dúvidas. Mas, nesse contexto, como é que se consegue fazer inovação? Esse é um dos dramas das empresas que operam em Portugal, que se deparam com regras de normalização de tamanhos de letra ou de expressões obrigatórias como “chamada fixa nacional”, que implicam custos significativos para as seguradoras de cada vez que são alterados, mas que os responsáveis das mesmas duvidam que tenham impacto, ao nível de utilidade, para o cliente final. «Essa é que devia ser a preocupação do legislador », desabafam. «Como consumidora, quando vou fazer um seguro, aquela informação toda não me tranquiliza. Pelo contrário. A pessoa não lê.» Importa questionar se a legislação está a ajudar ou a dificultar a própria literacia do sector.

Os responsáveis contam que há discussões de fundo quando se está em fóruns internacionais deste sector, mas que quando se chega a Portugal as ideias não se conseguem implementar por esbarrarem na legislação. Entre essas discussões, com o objectivo de crescer, estão temas de como servir melhor o cliente, garantindo-lhe mais protecção. Discute-se o tema, fala-se sobre aspectos que acrescentariam valor, mas apercebem-se que em Portugal não é possível.

Daí que lhes seja evidente que, apesar de o sector segurador ter evoluído na transformação digital, não o tem feito ao mesmo ritmo que outros sectores já evoluíram. «Não é por falta de vontade das seguradoras, mas muito por todas as barreiras com que nos deparamos, como o compliance e a legislação. Tudo isto traz uma série de dificuldades – além dos sistemas complexos e que exigem investimentos muito grandes – para chegarmos mais perto do cliente como ele quer.»

Os responsáveis à mesa do pequeno-almoço não escondem que têm imensa vontade de dar passos gigantes no que diz respeito à comunicação e literacia no mundo dos seguros. Mas esbarram com obstáculos legais e de compliance.

«Muita coisa melhorou nos últimos anos, mas ainda não conseguimos dar os passos que nós gostaríamos de poder dar, precisamente porque não é possível. Não nos são aprovadas essas alterações. O exemplo da palavra “prémio” é simplista, mas é exemplificativo daquilo que estamos a dizer. Porque carga de água não podemos dizer “preço” como em tudo no mercado? Para o cliente é quase anedótico dizermos prémio quando é algo que a pessoa vai ter de pagar. Estamos a baralhar o cliente.»

Mas há mais: «Se a ASF certifica que aquela entidade pode vender seguros e se a entidade tem um número de inscrição na ASF, qual é a relevância para o cliente de estar nas peças de comunicação o número de inscrição? Isso é relevante para o consumidor? Não. Só traz entropia.» A verdade, contam, é que 80% dos seguros são vendidos pela distribuição tradicional. E cabe à distribuição tradicional fazer uma venda aconselhada e explicada. À ASF deveria caber assegurar que essa documentação existe. Porque, sejamos honestos, o cliente quando se vai queixar não é porque viu um anúncio na internet ou na imprensa e faltava lá uma linha. Queixa-se porque comprou um produto no agente que foi mal explicado.

Ora aquilo que se exige a uma seguradora numa peça de comunicação em internet ou imprensa, por exemplo, é ter tantas linhas com “letrinhas pequeninas” que desmotiva qualquer campanha que as marcas queiram fazer para comunicar os seus produtos. A alegação da ASF é que, na ausência de determinadas expressões obrigatórias, o cliente pode alegar que foi induzido em erro. Mas – questiona-se entre os profissionais – «o cliente tem as condições gerais, tem as condições particulares, recebe tudo em papel ou por email, e o banner que está por um limitado período de tempo é mais válido do que tudo aquilo que ele assina?»

E no meio de tudo isso as seguradoras ainda vêem os CTT com produtos exactamente iguais, mas, como não são regulados pela ASF, não precisam das letrinhas. E ainda gracejam na comunicação a dizer “sem letras pequeninas ou asteriscos”.

O tema da legislação entronca na estratégia de comunicação que cada uma das seguradoras acaba por ter de adoptar para poder contornar cada uma destas questões e levando-as a privilegiar uns meios em detrimento de outros. Por exemplo, em rádio desinvestiram e já só fazem acções ou live copies onde conseguem trabalhar mensagens por causa das notas legais superextensas. Entre os participantes há quem admita que em alguns produtos optam por não comunicar e ter apenas a rede a vender com suporte de uma monofolha (também têm de ser validadas pela ASF), ainda que para a força de vendas ajude se o produto tiver tido uma campanha publicitária a divulgá-lo. Os eventos surgem neste panorama como uma forma de ter a marca presente na vida dos clientes e falar da marca sem ter todas as barreiras do regulador.

PERSPECTIVAS 2024

De uma maneira geral, o sector está a crescer este ano. Há alguns desafios ao nível dos custos e da pressão da sinistralidade que se têm reflectido na actualização dos prémios, especialmente em produtos de saúde e de automóvel. Aliás, uma parte do crescimento é justificada pela actualização de preços.

Em termos de sectores, a saúde continua a ser um ramo que está a crescer, mas temos de ver até onde a população aguenta. No automóvel está a começar a sentir-se o tema da transição energética e dos eléctricos e híbridos. Já não está com uma tendência tão crescente de vendas, reflectindo-se nos seguros. Apesar das seguradoras não terem produtos diferentes para veículos a combustão ou eléctricos, têm algum tipo de coberturas adaptadas às necessidades dos eléctricos como a assistência. «Há temas de custos e de análise de risco relacionados com os eléctricos que precisam de ser mais estudados », asseguram em jeito de explicação para ainda não existirem produtos diferentes.

A perspectiva até ao fim do ano é positiva. No entanto, não fosse este o sector da prudência, lembra-se que há alguma sazonalidade nos seguros e muita renovação no final do ano, descrito como «um momento difícil e da verdade». E se é verdade que o cliente hoje tem uma sensibilidade diferente para o prémio e que, como tudo aumenta, a expectativa é que os seguros aumentem também, há que ter em consideração de que não há muita elasticidade. «Não esqueçamos que os seguros são vistos como custos e não como protecção ou investimento.» E o que se verifica, em empresas, por exemplo, é que se o valor do prémio está acima do que tinha sido orçamentado, cortam-se coberturas e aumentam-se franquias, ficando o cliente com uma protecção diferente.

Este artigo faz parte do Caderno Especial “Seguros”, publicado na edição de Agosto (n.º 337) da Marketeer.

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