As orelhas são estranhas
Por Mário Mandacaru, Creative partner d’ A Equipa
Se quiser correr o risco de parecer destrambelhado(a) ou até indecoroso(a), experimente observar de perto as orelhas das pessoas. Só a orelha, esqueça o resto. Com um pouco de sonsice, pode aproveitar aquela hora de ponta na linha amarela no metro; a fila para comprar um hambúrguer no Bar do Guincho no Verão ou aqueles momentos enfadonhos na arquibancada de um jogo do Sporting. Ou do Moreirense. Olhe com atenção para esse pedaço de cartilagem que todos temos acoplados à cabeça e vai verificar que, independentemente da maior ou menor afeição que tenha pela pessoa, a orelha é uma coisa estranha. Até a orelha da Marion Cotillard é estranha. Ou deve ser, nunca a vi de perto. Ainda.
Esse exercício de descontextualização de um elemento do conjunto faz com que a sua avaliação seja no mínimo redutora. Uma orelha não deve ser vista isolada do corpo (Van Gogh experimentou e o resultado não foi bonito), assim como um logotipo não vive separado do seu contexto.
Faça a experiência, escolha uma marca, uma wordmark* de preferência. Uma que goste, aquela que tem para si algum significado ou simplesmente simpatize com ela, e fixe-lhe bem o olhar. Esqueça o resto. Ficou estranha? Fez-lhe sentido?
Quando foi apresentado, o logo para as Olimpíadas de Londres 2012 foi altamente criticado, inclusive no nosso meio profissional, chegando mesmo a circular pelo Reino Unido uma petição, que foi assinada por 48.000 cidadãos, exigindo que fosse refeito. Gosto é como nariz, cada um tem o seu (desculpem a segunda analogia anatómica), mas o facto é que, a meu ver, a identidade visual demonstrou ser a mais original, versátil e bem aplicada marca de sempre nos Jogos Olímpicos.
Confesso que nos sentimos bem quando geramos uma sensação de estranheza nas reuniões de apresentação de marcas aos clientes. Claro que para garantirmos a sua boa percepção fazemos sempre inúmeros exercícios de integração e flexibilidade num vasto universo de aplicações, demonstrando o seu funcionamento e a sua versatilidade.
A expressão pessoana “primeiro estranha-se, depois entranha-se” não pode adequar-se melhor às soluções que rompem de forma pertinente com o que está estabelecido. Sublinho “de forma pertinente” para não incluir neste raciocínio resultados questionáveis como a marca Lisboa Green Capital, que é tão disruptiva que pouca gente a percebe. Provavelmente há uma explicação, mas não há maior falta de piada do que sermos obrigados a explicar uma anedota.
Ao consumarmos um conceito (que abarca todo um trabalho de pesquisa e estratégia) numa expressão visual, temos de ter em conta que a maioria das pessoas não terá a oportunidade de conhecer o percurso que nos levou até à marca. Daí munirmo-nos dos recursos que os meios de comunicação nos dão para passar a ideia e os valores da marca. Se nem assim se conseguir é porque falhámos, quem fez e quem aprovou.
O potencial de afirmação de uma marca reside no seu poder de articular os seus activos visuais e verbais de forma tão abrangente quanto coerente. Não basta ter orelha, há que ter cabeça.
*Wordmark: o nome da empresa/produto/serviço é usado como marca, geralmente utiliza uma fonte única e personalizada para a representar. Coca-Cola, Google, Cascais ou a marca das bicicletas partilhadas Gira são alguns exemplos.
P.S. Eventualmente poderia ter feito a analogia com o pé, mas há pés inegavelmente bonitos.