As marcas devem ir para “fora de pé”. Mas o marketing não pode nadar sozinho
O mundo da Comunicação mudou radicalmente nas últimas décadas. Hoje, os consumidores esperam que as suas marcas de eleição se posicionem em temas políticos, sociais ou culturais, que sejam também elas, de certa forma, activistas. E algumas têm-no arriscado no mercado nacional. Mas, para dar esse passo, é fundamental que haja uma articulação e coerência entre todas as áreas da empresa, o que pode ajudar a mitigar alguns efeitos negativos que possam ter repercussões para a reputação das marcas.
Esta foi uma das principais conclusões da última mesa-redonda da 23.ª Conferência da Marketeer, que contou com a participação de Ana Baleizão (head of Corporate Communication & Engagement da L’Oréal), Leonor Dias (Brand director da Vodafone) e Nádia Reis (head of Brand Engagement da MC/Continente), numa conversa que teve moderação de Maria João Vieira Pinto, directora de Redacção da Marketeer. “A importância e a valorização do papel do director de Comunicação e como articular toda a comunicação que a empresa desenvolve” foi o tema que deu o mote à conversa.
E a verdade é que esta é uma área que, hoje, tem uma envolvente e uma responsabilidade diferentes em relação ao passado. «Se há 20 anos, um director de Comunicação era um gestor de mensagens, hoje é muito mais um orquestrador de várias vozes dentro da marca. Há esse desafio de alinhar o discurso nos diferentes touchpoints e plataformas da marca, mas mantendo uma linguagem diferente, porque falar nas redes sociais é muito diferente de fazer PR, por exemplo», lembrou Nádia Reis.
Este é, pois, um desafio que exige uma articulação entre todos os departamentos, porque só assim a comunicação pode ser coerente, independentemente do modelo de organização – embora esse possa ser um factor facilitador. Na MC/Continente, por exemplo, a Comunicação está dentro da área de Marketing, numa lógica de complementaridade. «Esses silos tendem cada vez mais a desaparecer e a haver uma convergência entre as diferentes áreas e o que podem aportar de valor», referiu a head of Brand Engagement da MC/Continente.
Já no caso da Vodafone, o Marketing e a Comunicação estão separados, mas «genericamente estamos alinhados. Quando as coisas correm bem, a articulação é importante, mas quando não correm é ainda mais crítica», sublinhou Leonor Dias. A Brand director da empresa de telecomunicações deu o exemplo das campanhas de Natal, que são lideradas pelo seu departamento. «Uma das coisas que fazemos é pensar em vários cenários de resposta nas redes sociais. Isso requer um trabalho em articulação com outras áreas, porque muitas vezes a resposta não é dada pelo Marketing, mas pelo Apoio ao Cliente, por exemplo.»
E, por vezes, esse trabalho de antecipação e articulação é fundamental para precaver eventuais efeitos reputacionais. A campanha natalícia do ano passado da Vodafone, por exemplo, foi dedicada à comunidade LGBT. Foi um risco calculado para a marca, que queria dar esse passo e abordar esse tema, mas acabou por ser uma campanha que dividiu opiniões. Se, por um lado, foi a «campanha mais partilhada nas redes sociais», com muitas pessoas a elogiarem a marca pela iniciativa, por outro «comprovou ser um “issue”, não para os jovens, mas se calhar para os menos jovens, para os quais este tema ainda é um estigma». «As nossas campanhas são sempre um factor de word of mouth nas redes sociais», reiterou a responsável.
Também para a L’Oréal a coerência é um tema fundamental, ou não gerisse um portefólio de mais de 30 marcas em Portugal. «Dentro deste mundo que é a L’Oréal há que manter a coerência entre todas as marcas e entre o propósito, a acção, a mensagem e os canais. Temos que ser coerentes com aquilo que somos, o que fazemos, o que dizemos e ter uma articulação dos múltiplos canais e targets que temos, interna e externamente. Orquestrar tudo isto não é fácil, mas o segredo está aí, para chegar onde queremos, com a mensagem certa», explanou Ana Baleizão.
De resto, este é um tema consensual para as três participantes no painel, com Nádia Reis a reiterar que «ter uma única mensagem com formas e tons diferentes é muito desafiante. Colocar numa única campanha todos os touchpoints é um desafio porque são muitas pessoas, muitas cabeças a pensar, mas é muito divertido. Não queremos elefantes na sala, queremos formiguinhas que, com a sua própria lente, contribuam para algo consistente.»
Quando ir para “fora de pé”?
Nesta mesa-redonda, as três responsáveis debruçaram-se ainda sobre o posicionamento que as marcas têm ou não que ter, ao dia de hoje, em relação a temas sensíveis ou que podem não ser tão consensuais. Para Ana Baleizão, as marcas que podem ir mais para “fora de pé” e sair da sua zona de conforto são aquelas que são mais fiéis ao seu propósito e mantêm essa consistência do ponto de vista comunicacional. «Porque aí sabem que o que estão a fazer é positivo e não põe em causa a reputação. Antes de o fazerem, é sempre preciso pensar no impacto que terá na reputação da marca. Nem sempre o ir para fora de pé é um passo positivo», advertiu a head of Corporate Communication & Engagement da L’Oréal.
No Continente, esta é uma preocupação constante, ou não fosse, pela sua natureza de retalhista alimentar, uma marca tão próxima dos consumidores no seu quotidiano. E também do ponto de vista da comunicação é preciso não defraudar aquilo que são as suas expectativas. «Temos de estar muito atentos à regulamentação do mercado e ao juízo final do cliente em relação aquilo que dizemos e como o dizemos. O Continente tem um escrutínio gigante por estar no dia-a-dia das pessoas e, se houver algum problema, há pessoas que chegam ao ponto de ir devolver o seu Cartão Continente», revelou Nádia Reis. «Queremos ir para fora de pé e hoje as marcas são obrigadas a isso, a questionar. Mas é também preciso auscultar aquilo que os clientes dizem», reiterou.
Já a Vodafone posiciona-se como uma marca que está «sempre fora de pé». E Leonor Dias revela que, muitas vezes, é o próprio departamento legal da empresa a colocar um travão à comunicação da marca, mais do que o próprio regulador do mercado. «Sinto que, por vezes, andamos no limiar e se há esse risco reputacional, é algo que faz parte da coragem de abrir o “peito às balas”, tendo a consciência que não são temas consensuais». Mas este é o posicionamento que traz dividendos noutras áreas, como o employer branding, com muitos candidatos a assumirem que gostariam de fazer parte da Vodafone porque se revêem nos valores da marca.
Mais uma vez, as responsáveis de três áreas distintas lembram que a articulação entre as diferentes áreas é o mais importante, não apenas no dia-a-dia, mas também em alturas de gestão de crise reputacional. Mas não é menos verdade que nem sempre é fácil de operacionalizar. Será o ego um dos elefantes nas salas de comunicação? «O ego desempenha um papel. É mais fácil defender uma ideia que nasceu no core da equipa do que abraçar algo que veio de outra. É um sentido de auto-preservação. Há sempre essa tensão entre Comunicação e Marketing, mas é preciso respeitar o trabalho uns dos outros», recomendou Leonor Dias.
O desafio para as organizações é transformar o ego individual num ego colectivo. «O ego que tem de prevalecer é, acima de tudo, o da empresa. Está na capacidade das pessoas que gerem a comunicação e reputação das empresas olhar para a individualidade de cada um e perceber como pode ser aproveitado para o bem comum. Perceber o que eles têm de importante para partilhar. Toda esta junção faz a diferença. É da soma das partes e dos egos que se consegue construir a reputação das marcas e das empresas», acrescentou Ana Baleizão.
Qual o papel do CEO?
Nesta equação de equilíbrio e articulação constantes entre Marketing e Comunicação, o papel do CEO é determinante e deve ter interferência? Ou, por outro lado, deve haver autonomia de cada uma das áreas? Esta é uma questão para a qual não há uma resposta única, porque depende do perfil do próprio CEO. Cabe a quem gere a comunicação e a reputação da marca ser uma espécie de “psicólogo” e trabalhar o perfil de liderança da forma que melhor sirva os interesses da marca. «Há uma maior ou menor liberdade consoante os riscos de reputação, a disponibilidade, o nível de compromisso, até o facto de ser um CEO extrovertido ou introvertido. Com base nestes factores, temos de tomar uma decisão. Ao longo das nossas carreiras, vamos encontrado perfis diferentes e temos de ir ajustando a estratégia», explana Ana Baleizão, acrescentando que na L’Oreal tentam estender essa participação do CEO, porque sabem que é uma voz que as pessoas, nomeadamente os colaboradores, querem ouvir.
Também na Vodafone o CEO tem um papel de grande relevância do ponto de vista da comunicação, por vezes em situações mais complicadas na vida da empresa. Há dois anos, a operadora foi alvo de um ciberataque e o tema foi liderado internamente, com bastante abertura, pelo CEO, que assumiu a verdade perante os colaboradores e todos os departamentos tiveram de seguir o exemplo e estar articulados. «O CEO é um activo para dentro, para a comunicação interna. É como um “pai” profissional. Mas também é um activo para fora, para a reputação, para a relação com os accionistas. Temos de estar à altura dele e ajudá-lo a dar o melhor de si», referiu Leonor Dias. Apesar de tudo, a responsável lembra que já houve alturas em que a marca Vodafone dependeu mais do CEO, que era quem tomava a decisão final em alguns temas; agora não é tanto o caso, o departamento de Marca está ligado à área de Consumo, que decide 85% dos temas. «Qualquer que seja o modelo, funciona. Não é fracturante que o Marketing e a Marca, ou o Marketing e a Comunicação estejam juntos. É preciso, acima de tudo, bom senso.»
De igual modo, no Continente os departamentos têm bastante autonomia dentro do chapéu que é a MC, mas depende do contexto. «Há situações em que é preciso mensagens mais mandatórias para mitigar situações de crise. Em determinados momentos, é preciso definir a bitola e qual a mensagem que queremos passar. Mas no dia-a-dia do nosso trabalho há uma confiança muito significativa naquilo que é o trabalho do Marketing», garantiu Nádia Reis. A responsável realça ainda a importância do CEO estar presente no dia-a-dia da empresa, junto do seu público interno: «Há 20 anos se calhar pouco se via um CEO a falar com os colaboradores; hoje é o nosso dia-a-dia. E é importante esse lado humano, mesmo numa era dominada pela IA.»
Texto de Daniel Almeida
Foto de Paulo Alexandrino/Paulo Petronilho