As desigualdades além do óbvio na Saúde
Por Sofia Ferreira, directora de Marketing e Vendas na Organon Portugal
A história da medicina foi maioritariamente escrita por homens e com base na biologia do homem. Sabemos hoje que um ataque cardíaco pode ter uma apresentação diferente em mulheres. Resultado? As mulheres têm menor probabilidade de sobreviver.
A propósito do Dia Internacional da Mulher, as desigualdades de género são o tema do mês, com diversas publicações subordinadas ao tema e com amplos debates sobre os números que demonstram uma realidade que, podendo não ser sentida por todos, existe e é inegável.
Hoje, venho escrever sobre uma desigualdade que muitas vezes fica fora da agenda em detrimento das mais óbvias (a salarial, a de oportunidades de carreira e de reconhecimento): a desigualdade na saúde.
Homens e mulheres são biologicamente diferentes e cada célula tem uma programação específica de género, com impacto nos tecidos, nos órgãos e nas várias funções do corpo humano. Estas diferenças têm implicações na saúde e na doença, nomeadamente na forma como os sintomas se manifestam, no diagnóstico e no tratamento, em patologias tão diversas como as doenças cardiovasculares, demências, doenças autoimunes e doenças oncológicas, entre outras¹.
Sabemos hoje que um ataque cardíaco pode ter uma apresentação diferente em mulheres, e que, além do aperto e desconforto no peito, podem revelar-se sintomas atípicos distintos dos sinais de alerta das guidelines. Por isso, recorrem mais tardiamente aos serviços de urgência e têm maior risco de complicações de tratamento. Resultado? As mulheres têm menor probabilidade de sobreviver a um ataque cardíaco².
A desigualdade na saúde começa com um défice de conhecimento originado pela desigualdade na investigação. De facto, os animais de género feminino não são geralmente incluídos em ensaios pré-clínicos e a proporção de mulheres é claramente minoritária em todas as fases dos ensaios clínicos. Portanto, não se sabe por que é que as mulheres têm mais risco para determinadas doenças, nem se sabe porque respondem de forma diferente a alguns tratamentos.
Sabemos também que é frequente ouvirmos histórias de mulheres que esperam anos até ao diagnóstico correcto, sendo que sintomas genéricos, como dor e fadiga, são muitas vezes associados a sintomas psicossomáticos, podendo mesmo levar a diagnóstico de doença mental.
Assim, não se procuram outras causas e não se obtêm respostas que permitam abordar o problema da forma mais correcta. Nesta mesma temática, recomendo o livro de Eleanor Cleghorn, “Unwell Women”³, em que a autora partilha a sua experiência de como passou sete anos com dor e com outros sintomas que não foram valorizados, até ser diagnosticada com lúpus.
As desigualdades de género são antigas e fazem parte da história da humanidade. As mulheres foram sub-representadas na política, na educação e na economia. Da mesma forma, a história da medicina foi maioritariamente escrita por homens, com base na biologia do homem. Mas a saúde tem género e a doença tem perspectiva e só evoluindo numa equidade de conhecimento médico e de abordagem diagnóstica poderemos tratar mais e melhor as mulheres.
Acredito que promover uma maior representatividade de mulheres como investigadoras, investidoras e empreendedoras pode contribuir decisivamente para atenuar as desigualdades em saúde, com a geração de mais soluções para problemas de saúde que afectem desproporcionalmente as mulheres.
As mulheres representam metade da população mundial e o investimento na saúde da mulher é hoje um mundo de oportunidades para empresas que operam na saúde, quer seja através de medicamentos, como de dispositivos médicos ou pelo desenvolvimento da indústria de femtech – software e tecnologia que respondem às necessidades biológicas das mulheres.
Investir numa melhor saúde da mulher gera resultados para os vários intervenientes, mas acima de tudo tem impacto para as mulheres e para as famílias pelas quais são responsáveis, desde os idosos às crianças.
Com uma contribuição a longo prazo, poderemos ambicionar viver numa sociedade mais saudável, em que homens e mulheres têm o acesso a cuidados de saúde com equidade e com melhores resultados.
¹ World Health Organization. Gender and noncommunicable diseases in Europe: analysis of STEPS data (2020). https://www.euro.who.int/en/health-topics/disease-prevention/tobacco/publications/2020/gender-and-noncommunicable-diseases-in-europe-analysis-of-steps-data-2020.
² Mehilli J, Presbitero P. Coronary artery disease and acute coronary syndrome in women. Heart Br Card Soc 2020;106:487–92.
³ Cleghorn E. Unwell Women: Misdiagnosis and Myth in a Man-Made World. Orion Publishing Group, Limited; 2021.