Anne Frank. O exemplo de uma criativa enclausurada que mudou o mundo

Por Frederico Roquette, CEO e director Criativo da 9, agência de publicidade e branding

Nem há um mês, logo antes do ataque implacável deste Coronavírus, que muitos descrevem como idêntico a uma verdadeira guerra, estive em Amesterdão, num curso intensivo de Design Thinking. O pouco tempo livre que me sobrou, usei-o para ver as obras dos grandes mestres e tentar compreender um pouco da loucura de Van Gogh.

Procurei visitar, sugestão da minha filha, a casa onde Anne Frank se escondeu dos nazis. Um pequeno sótão, onde permaneceu durante dois anos. Mas os bilhetes esgotados para os dois meses seguintes fizeram-me desistir da ideia. Inexplicavelmente, todos os dias, no caminho do curso para casa, perdia-me pela noite gelada de Amesterdão, passando por caminhos diferentes, e acabava sempre por ir dar, sem querer, à rua da casa da célebre diarista. De certa forma, senti que a cidade, ou acaso, me estava a pressionar para a visitar. Esta sensação levou-me a insistir em arranjar bilhete, o que consegui, com grande esforço, para as 20:30 da noite no meu último dia na cidade. Acredito que a vida nos explica sempre, mais à frente, estes estranhos sinais.

Hoje, fechado em casa como vocês, de quarentena, acho que percebi o que fui ali aprender e compreender: valorizar quem não se deixa vencer pelas enormes adversidades que enfrenta e que as supera através da criatividade. Anne superou, enclausurada, desafios tão maiores e mais incompreensíveis do que os que nós vivemos neste momento.

Estamos aqui em casa por uma razão grave, mas ainda assim muito menos assustadora, pois é bem menos incerta e aleatória do que o antissemitismo. Aquele sótão não é um sítio para pessoas impressionáveis e não há quem não fique com a garganta seca depois de entrar no esconderijo de Anne Frank. Por detrás de uma estante de livros, onde viveu em silêncio.

Para quem trabalha com criatividade, o exemplo de Anne é ainda mais impactante. Pela sua gigante capacidade de, com pouco mais de 13 anos, fechada num sótão, e a saber que os seus amigos eram mortos e assassinados, escrever um diário tão rico em ideias, conceitos, e utilizando ferramentas tão actuais para os representar. Anne Frank mostrou-nos que, mesmo enclausurados, escondidos, assustados e fartos de tudo e de todos, podemos ser verdadeiros criativos. Até mesmo ao ponto de tentar melhorar o que somos e o mundo em que vivemos.

“Como é maravilhoso que ninguém precise de esperar um único momento antes de começar a melhorar o mundo”, escreveu naquele sótão.

Muitos outros pormenores típicos de uma mente criativa sobressaíram em tudo o que ali vi, naquela verdadeira clausura imposta pela sobrevivência.

Nas paredes do seu quarto, as imagens dos actores famosos da época, que recortava das revistas que lhe passavam clandestinamente. Pendurados na parede, eram fonte de inspiração para se imaginar num outro sítio. Um cenário que não é muito diferente das paredes de uma agência ou sala de criativos, onde penduramos as imagens e objectos de que gostamos, as referências para ajudar a alimentar um projecto, ideias que vamos tendo e que merecem ser elaboradas, sonhadas.

Anne deu um nome ao seu diário, chamou-lhe “Kitty”. E nele escreveu os seus textos, como se estivesse a compartilhar os segredos mais profundos com esta amiga querida mas imaginária. Também inventou um amor que nunca existiu e descreveu os seus colegas de esconderijo utilizando nomes falsos, não fosse o diário parar às mãos erradas. Curiosamente, também isto não é muito diferente do que fazemos quando estabelecemos uma “persona” como ferramenta de marketing ou nos focamos em alguém que conhecemos como representante “daquele” target. E quantos formatos criativos não são em forma de carta ou manifesto direccionados a alguém que se indentificará?

Mas Anne foi mais longe e, criativamente, para fugir à solidão, no anexo secreto, longe de amigos e pessoas da sua idade, compensou o que estava a perder, criando cenários imaginários, com base nas memórias do seu passado. Tal como os criativos cruzam as suas experiências pessoais com as indicações do cliente e as experiências dos consumidores, enriquecendo conhecimentos, imaginando cenários ideais, para trazer profundidade às ideias.

Anne representava dramas no palco da sua mente, experimentando papéis que não podia tornar reais fora dos acanhados aposentos onde se escondia, mas que davam uma dimensão muito mais poderosa aos seus escritos. E, ao contrário de nós, Anne não tinha telefone, televisão, WhatsApp, internet, Houseparty, TikTok, Zoom ou Skype. Só um pequeno rádio que tinha de ser escutado de noite, com o volume no mínimo e sempre para ouvir más notícias.

Acredito que a criatividade ajudou Anne a suportar aqueles dois anos e que é uma das razões pelas quais o seu diário permanece tão popular, mesmo sessenta e sete anos depois de ter sido escrito. Foi lido por dezenas de milhões de pessoas de todo o mundo. E acredito também que, no momento que vivemos, Anne pode ser uma referência ainda maior para todos os criativos que se encontram de quarentena e precisam de sentir a força de um exemplo como este, que criou algo “enorme” numa situação bem pior do que a nossa. Um dos grandes dilemas que temos agora é também o que fazer com todo este tempo que temos em mãos. Talvez uma oportunidade para ler sozinhos ou em família os Diários de Anne Frank? Ou escrever os nossos próprios diários e enchê-los de ideias que, tal como as de Anne, tentem mudar o mundo. Torná-lo melhor, mais positivo.

Anne Frank foi traída por alguém que sabia onde se escondia e que informou a Gestapo. Mas, antes de ser presa, ainda escreveu no seu diário:

“É uma maravilha eu não ter abandonado todos os meus ideais. Eles parecem tão absurdos e impraticáveis. Mas agarro-me a eles porque ainda acredito, apesar de tudo, que as pessoas são verdadeiramente boas de coração… Vejo o mundo a ser lentamente transformado num deserto, ouço o trovão que se aproxima que, um dia, nos destruirá também a nós, sinto o sofrimento de milhões. E mesmo assim, quando olho para o céu, sinto de alguma forma que tudo vai mudar para melhor, que essa crueldade também vai acabar, que a paz e a tranquilidade voltarão mais uma vez.”

Penso que, se ainda estivesse a escrever o seu diário hoje, Anne diria, de forma criativa, que a solução para o bem de todas as pessoas, seja qual for a sua origem, crença ou religião, é neste momento continuarem no sótão bem escondidos e não sair à rua. Mesmo que a Gestapo já lá não esteja pronta para fuzilar e que agora o inimigo seja invisível. Continuemos a criar aqui, de dentro.

No horrível campo de concentração de Bergen Belsen, Anne Frank não morreu às mãos dos nazis nem numa câmara de gás. Foi, curiosamente, vitima de uma epidemia. Tinha 15 anos e nem isso a impediu de conquistar o mundo com as suas ideias.

Artigos relacionados