Agora é que é

susanaalbuquerque2Eu ainda sou do tempo em que o director de arte começava a carreira como maquetista, e havia um ilustrador a trabalhar dentro da agência só para desenhar storyboards. Havia uma sala para guardar k-lines e material de escrever e desenhar, uma verdadeira papelaria dentro da agência, que era preciso fechar à chave para não haver abusos, mas cujas visitas se podiam com­parar a idas sorrateiras a uma loja de doces para quem era economato­-bulímico como eu. Havia marcadores Edding e canetas Copic da cor de todos os Pantones, cadernos de vários tamanhos, blocos de layout onde dava vontade de escrevinhar, mesmo para quem não sabia fazer um layout como eu. Quando comecei a trabalhar, os directores de arte já tinham Macintoshs LC, mas havia senhoras secretárias para bater à máquina os textos dos copys. Depois vieram os Classics a cores e os primeiros documentos de Word, copiavam-se os textos para uma disquete, e passava-se a disquete ao director de arte. A media tinha do­res de cabeça com a revolução que a SIC e a TVI traziam, era preciso aprender tudo de novo, porque havia mais dois canais onde planear anúncios de 30″. Os accounts passavam briefings e deixavam um enve­lope de papel em cima da mesa dos criativos com a ordem de trabalho. Não havia Google, em vez disso havia envelopes de papel craft, e lá dentro estava, em fotocópia ou disquete, tudo o que o departamento de contacto tinha pesquisado sobre o projecto e que podia vir a ser útil. Compravam-se anuários e livros de publicidade de outros países para procurar inspiração em bons anúncios feitos por outros. Havia estan­tes do chão até ao tecto cobertas de catálogos do Image Bank, que era preciso lamber folha a folha até encontrar a imagem certa para fazer uma maquete. À noite, no intervalo do telejornal, quando o anúncio do pastor dizia “tou xim”, toda a gente o via e no dia a seguir toda a gente se lembrava e comentava. Tínhamos mais marcas de bancos, de seguradoras, de jornais e de revistas, tínhamos grandes campanhas de privatizações para fazer e produzíamos filmes e fotografias para mar­cas de automóveis. Havia a agência de publicidade, o departamento de design onde se faziam logótipos (nesta altura chamavam-se logotipos), embalagens, brochuras e relatórios e contas, e as agências de below the line, onde se fazia tudo o resto: mailings, folhetos, promoções e o que não sabíamos bem o que chamar.

Passaram 20 anos, e estas memórias têm o romantismo que o revivalismo traz sempre. E é frequente ouvir colegas de profissão queixarem-se que dantes é que era bom. Deixa-me sempre um pouco perplexa. É verdade que dantes o dinheiro era mais fácil. Com menos trabalho, conseguíamos ganhar mais. É verdade que dantes a agência de publicidade era mais ouvida e mais respeitada: agora somos tantas agências e todas fazemos tudo, que é cada vez mais difícil ganhar tempo de antena e respeito até junto dos clientes. Mas também é verdade que os projectos mais livres, mais criativos e com melhores resultados que tenho em mãos agora eram impensáveis e impossíveis de pôr em prática há 10 ou 20 anos atrás.

Na agência onde trabalho, por exemplo, neste momento estamos a produzir uma ficção documental em 18 webisódios para a Tagus, uma cerveja que se posiciona como a cerveja dos universitários. É uma produção conjunta da agência com uma pequena produtora de conteúdos acabada de formar, porque alguém com talento e com uma câmara de vídeo é capaz de fazer filmes.

Nos primeiros dois episódios de cinco minutos cada, e em apenas três semanas, temos mais de 30 mil views. Os episódios estão alojados gratuitamente no YouTube, e ali ficarão para sempre ou por uns bons anos. Quem os vê e gosta, comenta e partilha com os amigos. Para além dos episódios, produzimos cartazes e anúncios para meios universitários. Com o mesmo budget, há 20 anos atrás, dificilmente faríamos num ano inteiro uma promoção nos cafés, um salesfolder e uma pequena campanha de imprensa. E ainda outro exemplo: desde Julho, em 4 meses de campanha, conseguimos 15 mil fãs para a marca Guronsan no Facebook, graças a um Monstro das Ressacas verde que criámos, que fotografámos na agência no mesmo dia em que criámos as ideias, e que filmámos na rua a chatear quem passa. O cliente Guronsan é aliás um bom exemplo de como os tempos mudaram para melhor. Quando passou o briefing à agência, em Junho, o cliente queria fazer um mupi no metro, um spot de rádio e uma activação colada à semana dos festivais de Verão. Há 20 anos atrás era isso que a agência teria feito. Agora não. Agora é que é.

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