José Avillez: “Acredito mais na Marca Lisboa”

José Avillez lamenta a falta de visão dos governantes face ao valor da gastronomia na promoção de Portugal. Mas acredita, sim, no potencial da Marca Lisboa, razão que o leva a abrir mais dois espaços no Chiado, este ano.

Texto M.ª João Vieira Pinto

Fotografia Paulo Alexandrino

Faz análises SWOT aos pratos, desenha procedimentos e passos na cozinha e tem em mãos a compilação de um Book of Rules para o Restaurante Belcanto. Já estudou com os melhores do mundo, de Ferran Adría a Alain Ducasse e Eric Frechon, e continua a querer fazer cada vez melhor.

Porque o objectivo de José Avillez, o chef que conquistou em Novembro uma estrela Michelin para o Restaurante Belcanto – depois de ter conseguido igual feito para o Tavares -, é não ter um limite. É ter, sim, uma rota, uma ambição. «É sermos os melhores. É não chegar a um fim, mas sim continuar a caminhar sempre para um objectivo», declara.

Acredita na criatividade como uma das máximas para o sucesso. Mas a esta não deixa de juntar uns gramas de qualidade e umas pitadas – largas – de persistência. Porque só assim, defende, se consegue construir e afirmar um projecto.

Ele, que acredita mais na Marca Lisboa do que propriamente na Marca-País, confessa ser difícil fazer boa restauração em Portugal. E diz mesmo que ainda há uma falta de visão por parte dos representantes do Estado: «Têm que querer e que acreditar que, de facto, a gastronomia é de um enorme valor para o País.»

O que não o impede, contudo, de estar prestes a abrir mais dois projectos, no Chiado. Porque ambição é palavra que José Avillez conhece bem.

Um bom chef, um bom restaurante, podem fazer mais pela imagem de um país do que algumas campanhas promocionais?

É muito difícil avaliar até que ponto uma campanha é uma boa campanha. Na teoria, diria que pode. Na prática, não é só um bom restaurante ou um bom chef. Há muitas outras áreas que fazem muito mais por um país do que uma campanha. Diria até que, cada vez mais, a permanência com que se comunica um bom projecto tem maiores resultados que uma campanha.

Por exemplo, já tivemos aqui [Belcanto] pessoas de Nova Iorque que nos disseram: «Viemos passar um dia e meio a Lisboa por causa do seu restaurante»… Claro que são excepções, mas acontece termos clientes que nos dizem que uma das razões que os levou a planear a viagem foi o quererem conhecer o restaurante.

Uma das razões por que as pessoas viajam está muito ligada à comida, aos restaurantes.

Notou alguma diferença em termos de procura, depois do Belcanto ter conquistado a estrela Michelin em Novembro?

Notámos uma maior procura, em particular por parte de franceses, que seguem muito o guia. Registámos uma média de 20% de crescimento.

E 20% não só em reservas, como em valor médio por refeição, porque as pessoas consomem mais, querem experimentar mais, pedem mais menus de degustação… Antes de recebermos a estrela, lembro-me de termos tido aqui um casal oriental, em que a senhora pediu uma entrada e o senhor foi directamente para o prato. Mas quando a comida chegou à mesa, o marido pediu a carta outra vez porque não se tinha apercebido de como era especial. Depois de se ter a estrela, esta é a garantia à partida.

É outra exigência?

Nós não mudámos a exigência porque ganhámos a estrela. Ela já existia e se calhar por isso é que a ganhámos. Agora, vamos continuar a ser mais exigentes ainda, pela nossa vontade de fazer melhor.

Há críticas à sua cozinha em jornais e revistas de todo o mundo, desde a “New York Times Style Magazine” à “Examiner”… Como é que lida com os artigos que escrevem a seu respeito e até que ponto influenciam, ou não, o seu trabalho?

Este é um trabalho de equipa, pelo que ficamos contentes com as positivas e menos contentes com as negativas. Mas o nosso foco de trabalho é tentar perceber, todos os dias, como podemos ir mais além, como podemos fazer mais. Não nos agarramos muito à crítica.

Um dia ouvi o Armando Cortez dizer a um amigo meu, jovem actor: não te agarres às críticas que te fazem, porque a maior parte das vezes nem são verdadeiras. Há sempre uma grande subjectividade na crítica. Temos que olhar para elas e saber tirar o que há de bom e de mau. Mas continuar sempre focados no nosso trabalho.

Não alteram a forma de gerir o seu trabalho, os pratos que concebe…

Não é fácil alguém ter a capacidade de escrever uma crítica que nos abale ao ponto de alterarmos aquilo que fazemos. É preciso um conhecimento gigantesco da comida, do prato, da cozinha… Se alguém me diz que um prato estava salgado, isso é uma coisa muito prática, objectiva. Face a isso tento arranjar métodos para controlar ainda mais a cozinha e evitar que saiam pratos salgados.

E isso é algo que pode acontecer, até porque o nível de sal difere de pessoa para pessoa. Nós, por exemplo, demolhamos o bacalhau 3-4 dias e, ao fim do terceiro dia e de duas em duas horas, duas pessoas vão tirando um bocadinho do sal. Mas isso não invalida que a lasca ao lado do sítio onde provamos não esteja mais salgada…

Há tempos ouvia um publicitário amante de cozinha dizer, numa apresentação, que só se pode estar no topo se se fizer diferente, com os melhores produtos, a melhor equipa. É também esta a sua visão?

Sim, tenho sempre uma inspiração nacional, que pode ir desde uma receita tradicional a uma paisagem ou um momento associado à minha vida, à minha infância. Procuro não copiar mas não me preocupo que os pratos não sejam copiáveis, antes pelo contrário. A identidade, a força e a influência de um chef assinala-se quando os seus pratos começam a ser copiados. É isso que acontece no mundo inteiro.

É muito difícil criar. É muito mais difícil inventar. No mundo ocidental haverá cinco ou seis chefs que inventaram qualquer coisa e que têm uma identidade muito própria, como o Ferran Adrià, o Andoni Aduriz (do Mugaritz)… Por exemplo, atribuímos ao Adrià a invenção da esfereficação. Mas em 1930, no Japão, havia fábricas de esfereficação de ovas de salmão que eram depois vendidas como caviar! O que o Adriá fez foi trazer essa invenção para a alta cozinha.

Eu tento fazer diferente. Não tento sequer inventar. Tento criar, fazer originais, não copiar. Se bem que há cópias que podem acontecer de >forma não consciente! E se os meus pratos forem copiados, melhor para mim. Significa que fiz alguma coisa que as pessoas querem copiar. Não faço nada para não ser copiado.

Esta atitude é replicável em qualquer outro negócio José Avillez, desde o Cantinho ao catering?

Acredito que a criatividade é transversal. Tem que se ser criativo para se ser feliz. Tem que se ser criativo no dia-a-dia, nos conceitos de restaurante, na decoração, na forma de servir… Os meus conceitos de restaurante nascem – e tenho aí seis criados, válidos, na minha cabeça – quase sempre quando quero servir um prato em determinado ambiente e não o tenho.

É assim que desenvolvo o conceito. Crio desde o zero, com imensa paixão. E acredito que tem que ser assim. Se a nossa visão for meramente financeira, nunca vamos conseguir resultados. Se o projecto for servir muito bem determinada coisa, num certo lugar, àquelas pessoas, aí temos mais hipóteses de ter sucesso…

Só que um restaurante é uma empresa e também é preciso ter a visão financeira!

Claro que sim. Mas a primeira visão de criação não poderá ser essa.

De qualquer forma, o seu primeiro projecto – o 100 Maneiras de Cascais – não colheu os resultados esperados… Aprendeu com o processo? Ajudou-o a crescer?

Montei o 100 Maneiras em 2004 e convidei para trabalhar comigo o Ljubomir Stanisic (actual dono do 100 Maneiras, Lisboa). Ao fim de um ano, por uma série de razões pessoais, vendi a minha quota e fui viver uns meses para o Brasil. Em termos de negócio, o restaurante funcionava bem e até recebemos o prémio Revelação do Ano. Não o vejo de todo como um projecto que tenha falhado. O que falhou foi o não ter sabido gerir uma sociedade.

Por isso, em 2006, e depois de regressar, montei o José Avillez Catering, que ainda existe, e depois fui para o Tavares como chef de cozinha. O negócio não era meu, mas sempre me preocupei como se fosse, com os custos, com as contas, a imagem, a comunicação…

… alguma influência do curso que tirou, de Comunicação Empresarial?

Obviamente que ter uma formação académica, que não na área de Cozinha, ajuda sempre. Até porque há cursos superiores de Cozinha que pouco de cozinha têm, só 10% de aulas práticas. O ter estudado outras áreas ajudou-me muito.

Apontam-me muitas vezes como sendo um bom marketeer!

Tem uma grande preocupação com a sua imagem, com a imagem da sua marca!

Tenho essa preocupação porque não faz sentido que não seja assim. Podemos ser os melhores do mundo, mas se ninguém nos conhecer nunca o vamos ser, nem do bairro. Daí a importância de se saber comunicar bem aquilo que fazemos.

Além disso, hoje, e sempre que alguém olha para mim como um exemplo, sinto uma maior responsabilidade de ser esse exemplo. Seja num programa de TV, ou junto da minha equipa, tenho a responsabilidade de fazer o que acredito e de fazer bem feito. Não vivo preso a isso mas, depois de me tornar mais conhecido, comecei a ter mais cuidado ainda com o que digo ou com o que faço.

Sempre soube onde queria chegar?

Há pouco, na festa de Natal da empresa, fiz um pequeno discurso onde disse que há 10 anos queria ser cozinheiro e queria ficar com um restaurante que havia ao lado da minha casa, em Cascais, com 20 lugares. O meu alcance era ficar com aquele restaurante e fazer cogumelos recheados e queijo de cabra gratinado. Hoje, posso dizer que consegui 100 vezes mais do que algum dia esperei. Quase todos os dias traço um objectivo. E hoje conseguirei ver mesmo ao fundo…

Qual é o seu objectivo?

É sermos os melhores. É não chegar a um fim, mas sim continuar a caminhar sempre para um objectivo. Não parar de trabalhar para chegar a um sítio onde nunca se vai chegar. O Adriá, por exemplo, teve o melhor restaurante do mundo. Mas será que é mesmo? Foi quem mais influenciou cozinheiros, teve uma série de prémios, mas é isso que faz dele o melhor do mundo? Ou seja, nós trabalhamos para não chegar ao fim.

Há uns anos, olhava para uns colegas meus mais velhos e dizia: “Um dia quero ser como eles.” De repente, fui crescendo, fui construindo. O meu grande desafio é conseguir criar a minha verdadeira identidade culinária e fazer com que as pessoas me sigam.

Essa identidade está presente nos diferentes negócios por que responde? No Belcanto, o Cantinho do Avillez, a José Avillez Catering, o take-away JÁ, ou nos livros, nos produtos para cozinha?

Há uma identidade culinária e uma identidade empresarial que se encontra nos diferentes espaços. A identidade artística associada a tudo isto é que é diferente. Aí, o Belcanto é diferente de todos. Tem valores bem definidos, uma missão, uma visão. E a empresa toda respira essa visão. O sorriso com que se é recebido no Belcanto é igual ao que se recebe no Cantinho ou em Cascais.

Como é que garante essa identidade?

Com uma grande equipa que, assim como eu, tem uma grande paixão e acredita no que faz.

Que conselhos e que tipo de gestão leva para a cozinha? Como é que motiva, todos os dias, a sua equipa?

No Belcanto somos 18 pessoas, no total, com mais oito estagiários (que vão rodando de três em três meses). Na cozinha estão 18. Têm que estar em sintonia e têm que acreditar muito no projecto – mesmo que se trate de um estagiário. Motivo-os trabalhando, chegando primeiro e saindo depois. Para perceberem a paixão com que o faço. E não há um cozinheiro que prefira que eu não o critique quando entendo que não está bem. A palavra “passa” não existe. Temos sempre um grande nível de exigência.

Além disso, neste momento estamos a fazer e a desenhar a organização de todos os métodos e processos de cozinha. A classificar por níveis de responsabilidade, por tempos, por secções, estamos até a desenhar passos para facilitar a circulação num ou outro sentido. Para termos uma série de muletas que nos facilitem o dia-a-dia. É a verdadeira organização de um restaurante de alta cozinha.

Ainda há dias estivemos também a fazer uma análise SWOT de cada um dos nossos pratos. Para perceber quais os pontos fortes e os fracos, ameaças e oportunidades. Demorámos alguns dias até que toda a equipa percebesse, mas conseguimos. Não foi para nos divertir, foi para nos fazer pensar. Faz-nos pensar de que forma uma oportunidade ou ameaça vai influenciar o nosso trabalho do dia-a-dia. Como é que conseguimos encontrar métodos para ultrapassar essas ameaças e pontos fracos.

Agora, estamos a desenvolver aquilo que chamo as “muletas” para o empratamento. Prato a prato. Para que cada pessoa que chegue ao prato saiba os passos que tem que seguir. Se, por dia, conseguir poupar dez viagens a uma pessoa, ganho dessa pessoa dez minutos de trabalho, uma maior disponibilidade física.

Quando vemos o Fred Astaire a dançar parece que nasceu com ele, mas a verdade é que desenhou os passos 100 vezes para depois poder parecer natural.

É preciso compilar, escrever, anotar, estudar.

Foi aprender com alguém?

A ligação à Empadaria do Chef, da H3, ajudou. Ter a noção de que de repente temos que organizar trabalho para pessoas que não são essencialmente cozinheiros mas que têm que desenvolver processos, implica que esteja tudo muito bem organizado, codificado. Sempre fui muito interessado nisto. Há uns anos pedi mesmo ao pai de um amigo meu, que tem o franchising de um McDonald’s, para me deixar ver o Book of Rules.

Dizem que o Per Se, de Nova Iorque, tem um dossier gigante. Não sei se muitos outros terão. O que tento é adaptar, fazer e pôr em prática.

Portugal pode vir a figurar em breve na rota da alta gastronomia internacional?

O crescimento gastronómico, da alta cozinha, deu-se sempre em momentos de desenvolvimento económico dos países. Imagino, por isso, que não estaremos tão depressa nessa rota. Mas estão a ser desenvolvidos trabalhos para conseguirmos figurar. Não acredito que seja em massa, não acredito que sejamos uma Espanha, que conseguiu mais de uma dezena de restaurantes na lista dos 50 melhores do mundo, mas acredito que iremos conseguir pôr uma candeia…

O que é que não o faz acreditar? Não temos restaurantes a esse nível? Não nos sabemos promover?

Espanha, por exemplo, demorou muitos anos. Nós, em certas coisas, ainda estamos no início. Além disso, porque o nosso mercado é muito pequeno e a massa crítica também. Primeiro, teríamos que nos posicionar como um destino turístico e ter um volume de turistas muito grande para depois conseguir crescer a este nível.

O Ferran Adriá fez uma enorme revolução gastronómica, mas sempre teve um grande apoio do Estado para tudo. Acredito que um dia iremos conseguir colocar uma candeia. É sempre assim que começa. Nos países nórdicos está-se a desenvolver essa revolução por causa de uma pessoa, o René Redzepi do Noma. Espanha desenvolveu essa revolução por causa de uma pessoa. Mas depois os outros seguem-nos.

Mas os representantes do Estado têm que querer e que acreditar que, de facto, a gastronomia é de um enorme valor para o País. É muito duro fazer dinheiro com restaurantes.

É assim tão notória a falta de apoio do Estado em ajudar, em promover, em levar estes nomes lá fora…?

Não sei se é falta de apoio ou de visão. Posso dizer que tenho um grande apoio do Turismo de Lisboa, da Câmara Municipal de Lisboa, mas talvez por se tratar de uma estrada com duas vias. Eu dou muito a Lisboa e eles dão-me a mim!

Falta um planeamento estratégico e falta acreditarmos em nós, defendermo-nos. Se falarmos com um crítico espanhol, ele dirá que um chef ou restaurante daquele país é o melhor do mundo. Cá, criámos a marca do melhor peixe do mundo e uma semana depois houve logo quem viesse dizer “que disparate, não temos nada o melhor peixe do mundo”. Não consigo perceber. Claro que há subjectividade, mas temos que criar essas marcas e ir mais além.

Sinto que existe uma falta de persistência, que as pessoas constroem negócios para ganharem dinheiro num ano e, se não der, fecham. Há falta de compromisso, de um planeamento e de um fio condutor.

O ano passado tivemos dois dias especiais no Belcanto. Um foi quando ganhámos a estrela Michelin e outro quando esteve cá o Andoni, o chef do Mugaritz, dos mais importantes do mundo. Sentou-se, pediu o menu de degustação, foi à cozinha fazer um pequeno discurso e disse que nos últimos anos tinha estado em apenas dois restaurantes no mundo onde tinha percebido que estava perante pessoas com um nível muito bom e a quererem fazer mais: o Belcanto e um restaurante no Chile. Depois, deu entrevistas a alguns meios de comunicação social, onde disse que mesmo que não se tivesse possibilidade de ir ao Belcanto, devia-se acarinhá-lo porque é um projecto para Portugal e para o mundo.

E contou ainda: esteve oito anos no Mugaritz, onde teve dias sem ninguém, onde perdeu muito dinheiro, onde recebeu muitas críticas negativas, e aguentou sempre. Hoje, está em terceiro nos 50 melhores do mundo e, da geração dele, é dos cozinheiros que mais influenciou no mundo inteiro. O Noma, na Dinamarca, que está hoje no topo da lista dos 50 melhores, esteve vazio durante quatro anos. O René Redzepi cozinhava menus de degustação para 50 pessoas e não aparecia ninguém. Esteve a um mês de fechar as portas quando entrou para a lista dos 10 melhores do mundo. Isto é persistência!

Cá, é raro isto acontecer.

Para este ano, que projectos lhe faltam… além de querer consolidar o Belcanto?

Consolidar o Belcanto, o Cantinho, continuar a reestruturar o take-away e abrir mais dois projectos.

São dois projectos já bastante amadurecidos, que vão abrir no Chiado. Apenas posso dizer que são conceitos muito diferentes daquilo que temos e muito diferentes entre si. Terão uma ligação muito grande à cidade, que é uma das minhas grandes apostas. Acredito muito em Lisboa. Acredito mais na Marca Lisboa do que na Marca Portugal. Faço muito a relação Lisboa-Portugal com Istambul-Turquia. São realidades diferentes em que se pensa.

Em Portugal, eventualmente o que nos surge em primeiro lugar é “crise”. Pensa-se em Lisboa e surgem outras coisas. Temos este potencial por explorar. Por isso, os dois conceitos serão muito voltados para Lisboa, serão conceitos mais fechados.

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