A Pressão Digital
Por Elias João, redactor criativo na FCB Lisboa
E tu, o que é que fazias neste cenário?
Estás num bar com amigos e amigas a beber imperiais. Ao fundo entra um grupo de pessoas e tu trocas olhares com uma delas. De lá vem um sorriso e tu coras. Logo a seguir entra outro grupo de pessoas, entre elas um influencer famoso que não te atrai nada.
Decides ir fazer conversa, mas com qual dos grupos?
Onde está uma pessoa que te atrai genuinamente, mas que pode não ser activa nas redes sociais? Ou onde está o influencer famoso?
Antes de decidires, deixa-me apresentar-te o conceito de Dataísmo. O Dataísmo é a “religião dos dados, (…) que nos diz que as experiências que não são partilhadas (online) não têm qualquer valor e que não temos de procurar – na verdade não conseguimos – o sentido dentro de nós (…)”.
Não sou eu que o digo, é Yuval Noah Harari, escritor e historiador israelita, no seu brilhante livro “Homo Deus: Uma breve história do amanhã”. Yuval explica que a ideia humanista de que “(…) as experiências acontecem dentro de nós e que é aí que temos de procurar a razão de tudo aquilo que acontece, dando dessa forma sentido ao universo (…) e à vida, está completamente ultrapassada”.
Para o dataísta, as experiências só têm valor se forem fotografadas ou gravadas e partilhadas no “sistema”. Yuval acrescenta que este fenómeno não acontece porque está na moda, mas sim porque “(…) É uma questão de sobrevivência. Temos de provar a nós próprios e ao sistema que não perdemos o nosso valor. E esse valor não reside nas experiências, mas na capacidade de
transformar tais experiências em dados que circulam livremente. (…)”
Pois é.
Se quisesses ser um/a verdadeiro/a dataísta ias fazer conversa à mesa do influencer porque tinhas mais hipóteses de provar o teu valor ao “sistema” com uma story, um tag e talvez um post em que falavas sobre a divertida, mas vazia, noite que tiveste.
Não importa se tivesses ido à mesa onde estava a pessoa que te sorriu, ficassem horas a falar sobre as vossas infâncias, ela escrevesse o seu número num guardanapo, o colocasse no teu bolso com um sorriso e dissesse “Quero ver-te de novo”.
Mas, espera, não decidas já. Vamos pensar noutro cenário.
Algarve, segunda-feira de manhã, sol, o teu fato de banho favorito e uma garrafa de água fresca com limão na geleira. A maré está a vazar e está quase na altura de ires fazer uma das coisas que mais gostas: passear nas rochas e mergulhar. Mas também sabes que estás atraente, com um bronze brutal, e que se fores à água o teu cabelo vai ficar salgado e despenteado. Ora, toda a gente sabe que os teus seguidores adoram o teu cabelo.
Ainda por cima já não fazes um post há três dias e os teus seguidores começam a achar que a tua vida é igual à de toda gente.
Vais passear nas rochas e mergulhar, ou vais tirar fotografias com o cabelo perfeito e publicar no Instagram?
Pois é.
Se quisesses ser um/a verdadeiro/a dataísta ficavas na areia com o cabelo impecável porque tinhas mais hipóteses de provar o teu valor ao “sistema” com um post sobre o teu dia “mágico” na praia.
Não importa se tivesses ido às rochas, respirasses fundo a olhar para o mar e recordasses o teu pai, que ia sempre passear contigo. Não importa se tivesses mergulhado e estivesses horas a boiar enquanto olhavas para o céu. Não importa se aquele momento te desse a força que precisavas para ultrapassar um desafio.
Alguém gravou? Não? Então esquece, não importa. As experiências humanas não têm valor se não forem partilhadas online.
Um olhar, um dar de mãos, um riso que enche a sala, uma dança em cima da mesa, um abraço apertado. Tudo isso deixou de ter valor por si só.
Será que a necessidade constante de partilhar experiências no “sistema” já está a influenciar a nossa maneira de ser?
Será que é mais importante alimentar o sistema do que alimentar a alma?
Vamos ser obrigados a escolher entre seguir o coração e seguir o influencer?
O Yuval acha que sim.
Eu também.