A misteriosa relação entre os telemóveis e o Big Bang

O lítio é um dos elementos mais controversos para os cosmólogos – os modelos prevêem que deveria existir muito mais do que vemos, mas falta algum.

O que é que as baterias dos telemóveis têm que ver com os primórdios do universo? Para responder a esta pergunta, vamos fazer uma viagem. Imaginemos que tudo começou há 20 segundos. Quando se diz  “tudo”, referimo-nos-se ao próprio universo. Quando se escreve “começou”, quer dizer que até o tempo começou a sua existência tal como o conhecemos hoje (ou pensamos que o conhecemos).

Estamos a 20 segundos do Big Bang. Nesse momento, a temperatura de todo o Universo é de 1 bilião de graus, quase 100 vezes superior à temperatura do interior do Sol, e só atingida em algumas estrelas durante curtos períodos explosivos. A densidade de todo o Universo nessa altura é de cerca de 10 000 kg/m³, o que também não é assim tão elevado, sendo dezenas de vezes inferior à do interior do Sol, e mesmo inferior à coisa mais densa que temos na Terra, o ósmio ou o irídio.

A comparação com o Sol não é trivial. A temperatura e a densidade são tão extremas neste universo recém-nascido (embora o conceito de nascer seja estranho, ele não começa a sua vida num ambiente, é o próprio ambiente) que é altamente provável que as partículas colidam e se fundam, como no Sol.

E, mais uma vez, tal como no Sol, as partículas normais de matéria nessas condições são principalmente protões, neutrões e electrões, banhados por um mar de fotões, neutrinos e outras partículas mais exóticas (tão exóticas que algumas não têm massa). Ao ritmo de 20 segundos do relógio cósmico, as fusões são tão prováveis como as fissões. De facto, os protões e os neutrões encontram-se, colidem e juntam-se para formar outras partículas, a que chamamos átomos. Mais especificamente, núcleos de átomos, porque os electrões têm demasiada energia para serem atraídos para os núcleos, e passarão centenas de milhares de anos assim.

Da mesma forma, à temperatura e densidade que referimos, os átomos também colidem e dividem-se, libertando protões e neutrões, ou conjuntos deles.

Mas há uma diferença fundamental entre esse universo de 20 segundos e o interior do Sol. Enquanto a nossa estrela é estável e a temperatura, a densidade e o tamanho permanecem relativamente constantes enquanto a energia é criada nas reações de fusão, o Universo não é de todo estável numa propriedade: o espaço-tempo está a expandir-se, o seu volume é cada vez maior.

Se o conteúdo do Universo não se altera (não pode receber nada de outro lugar, nem libertá-lo, é “tudo” o que existe), e o volume cresce, então a densidade, que é a massa dividida pelo volume, diminui. Isto significa que se torna cada vez mais difícil a ocorrência de fusões e fissões, muitos átomos já formados não podem ser destruídos.

E chegará um momento em que não se formarão mais átomos, todos os peixes serão vendidos, nessa fase do universo que chamamos de nucleossíntese do Big Bang. BBN é como se escreve habitualmente, nós, físicos, somos preguiçosos e usamos muitos acrónimos (a maior parte deles vem do inglês, como neste caso).

A viagem que se descreve, em vez de ser feita por uma pessoa, é a viagem de todo o Universo. E que provas existem de que essa viagem existiu? Bem, com as  “fotos de recordação”, que neste caso identificamos com grande dificuldade. E é aqui que entram em jogo as pilhas do nosso título.

O processo de formação de núcleos antes do aparecimento das estrelas só deveria ter sido capaz de criar átomos com 2 protões, que define o elemento chamado hélio, 3 protões, que é o lítio, e alguns com 4 protões, que é o berílio. Para além destes três tipos de elementos, aos quais se junta o elemento com apenas um protão, o hidrogénio, os núcleos de cada elemento devem ter sido formados com diferentes números de neutrões.

Por exemplo, átomos de hidrogénio com um protão e um neutrão, que se chama deutério, ou com um protão e dois neutrões, que é o trítio. Ou elementos com dois protões e dois neutrões, que se chama hélio-4, a forma mais normal do hélio, que também pode aparecer como hélio-3, que tem dois protões e um neutrão. Ou elementos com quatro protões e três neutrões, a que se chama berílio-sete, que é o isótopo desse elemento que se deve ter formado nesse BBN.

Por que razão não se formaram outros elementos? Quantos átomos e isótopos de cada tipo se formaram? Quanto tempo durou esta fase do Universo? O que aconteceu aos átomos que foram criados nessa altura no resto da história do Universo?

Para responder a estas questões, temos de saber várias coisas e formar uma teoria que as ligue e que seja testável. Precisamos de conhecer as propriedades gerais do Universo, como a evolução da sua temperatura e densidade, o que é realmente uma boa compreensão da expansão nos primeiros momentos do cosmos.

Estes dados são essenciais para saber qual a probabilidade de encontro de partículas. Também precisamos de conhecer propriedades físicas que possamos estudar em laboratório, como a probabilidade de um protão e um neutrão se unirem para formar deutério, ou como essa probabilidade depende da energia das duas partículas (que depende da temperatura).

Também é necessário conhecer as reações de todos os outros átomos, embora o trabalho de laboratório se torne mais complicado porque para formar hélio-4, por exemplo, pode fazê-lo colidindo hélio-3 com um neutrão, ou juntando dois deutérios, ou destruindo um berílio-7 – os métodos de formação relevantes já são vários.

Não se fica por aqui, as quantidades de hidrogénio “normal” e de deutério, hélio-3, hélio-4 ou berílio-7 formados dependem de quantos protões e neutrões havia no início do processo, que somados dão toda a massa de matéria normal no cosmos. E há que ter em conta que os neutrões são muito instáveis, durando apenas cerca de dez minutos antes de se desintegrarem num protão e num eletrão (e noutras partículas), a não ser que se juntem aos protões num núcleo atómico, o que os torna muito mais estáveis.

Embora não completamente, alguns núcleos são também muito instáveis, ou seja, radioativos, como é o caso do berílio-7. Todo o processo BBN depende também do número de fotões existentes no universo e da sua energia – muitos ingredientes diferentes!

Como já dissemos, se reunirmos todos os nossos conhecimentos numa teoria, temos de ser capazes de a testar com dados. E é aqui que entra a parte astrofísica e a relação com os telemóveis. A nossa teoria da nucleossíntese do Big Bang prevê que o processo durou cerca de vinte minutos e que 75% da massa de todos os átomos criados estava sob a forma de hidrogénio (ou seja, protões “que sobraram”), e praticamente tudo o resto era hélio, com exceção de 0,01% de deutério e hélio-3 e um bilionésimo de lítio. Estas são conhecidas como abundâncias BBN.

As abundâncias de hidrogénio e hélio que observamos e medimos hoje, considerando devidamente os elementos que as estrelas foram formando e as variações muito pequenas que sofreram ao longo do tempo por outros processos, estão extremamente próximas do que a teoria do Big Bang prevê. O mesmo acontece com as abundâncias de deutério e hélio-3. Mas não as abundâncias de lítio: deveria existir atualmente no Universo cerca de três vezes mais lítio do que existe, ou pelo menos tanto quanto medimos.

O lítio, que é essencial para fabricar as baterias dos nossos telemóveis e de outros dispositivos que utilizam baterias recarregáveis, como os computadores portáteis ou os carros eléctricos, é muito menos abundante do que o previsto. Porquê?

Uma resposta possível é que há algo de errado com a teoria do Big Bang, algo que não compreendemos sobre a forma como o lítio se comportou no momento ou após o Big Bang.

Em alternativa, e talvez mais provável, as nossas medições das abundâncias de lítio no universo atual (14 mil milhões de anos após os 20 segundos primordiais do BBN) estão erradas devido a algum fenómeno que não contabilizámos. As empresas de baterias devem estar atentas, porque deve haver muito mais lítio a circular por aí. Há aí negócio (e ciência básica).