A iatrogenia na gestão das marcas: o que é isso de “boas práticas”?

Por André Zeferino, consultor em Estratégia de Marketing, autor dos livros “Digital Marketing Analytics” e “Marketing Mindset” e co-autor de “Marketing Futureland”

A iatrogenia é um termo da medicina para qualificar efeitos adversos, alterações patológicas ou complicações resultantes do tratamento e da acção terapêutica.

Quando contextualizada fora do campo clínico, a iatrogenia também acontece no meio social, político ou empresarial, pelas consequências prejudiciais de decisões e intervenções de qualquer profissional nas áreas da sua competência.

Observando esta realidade especificamente na indústria de marketing, o impacto iatrogénico tanto pode afectar a condição interna das empresas como gerar efeitos negativos nos consumidores, nas organizações ou na sociedade como um todo.

Trata-se de um fenómeno que torna cada vez mais complexo definir as chamadas “boas práticas” que salvaguardem a integridade dos activos da marca, a rentabilidade do negócio e a sua valorização sustentada no mercado, atendendo às suas dinâmicas estruturais.

Tudo isto implica saber quando intervir e como, já que decidir o que fazer é uma competência determinante, tal como saber decidir exactamente o contrário: O que não devemos fazer para não criar danos desnecessários.

Quando não intervir pode ser uma excelente prática

É quase impossível não actuar numa indústria onde as tendências são um incentivo constante para (re)desenhar planos e implementar iniciativas, influenciando muitos gestores e decisores a equacionarem o seu status quo num receio permanente de perda (qual FOMO) perante inúmeras novidades, tecnologias, ferramentas e dicas que surgem a qualquer momento.

Actuar e fazer algo é intrínseco ao comportamento humano, tal como avança Peter Weinberg do Instituto Linkedin B2B, que atribui esta condição a uma tendência cognitiva – Intervention Bias – para caracterizar a necessidade ou a predisposição do ser humano em intervir perante as mais diversas causas apenas para que se sinta no controle das situações.

Também Nassim Taleb (autor do “Cisne Negro”) numa das ideias centrais do seu livro “Antifragile: Things That Gain from Disorder”, enquadra esta nossa tendência de intervir em situações para impedir eventos voláteis, acabando a mesma por adiar ou reprimir mudanças genuinamente necessárias, quando a própria volatilidade dos mercados e das economias é pertinente para equilibrar sistemas de forma natural.

Aceitar o erro tornou-se quase um “mantra” no meio empresarial para fomentar a aprendizagem e o desenvolvimento de competências de Gestão, mas é fundamental conhecer os limites das suas práticas, avaliando hipóteses, para que estas sejam consideradas “boas” e recomendáveis.

As boas práticas são “mais fáceis” de estabelecer em períodos de maior estabilidade mas hoje existem demasiadas variáveis a ter em conta que aumentam o poder de escrutínio e a capacidade de desconstruir argumentos, o que reforça a necessidade de investir no melhor conhecimento e, ao mesmo tempo, criar uma barreira contra as “panaceias”.

A iatrogenia no conceito criativo

A gestão da comunicação das marcas é uma área nevrálgica dentro do universo de competências de marketing porque lida com conceitos criativos que dependem das dinâmicas da natureza humana, do seu quotidiano e do funcionamento dos mercados em geral, e que por isso mesmo são ajustados para resultados mais imediatos ou de longo prazo.

Esta diferenciação de abordagem – entre a performance no momento e a nutrição da marca – traduz, provavelmente, a variável mais desafiante de sempre que a digitalização trouxe para a gestão das marcas, ao permitir intervir em tempo real, através de meios e mecanismos, na optimização do conceito e do respectivo conteúdo, quebrando o paradigma da mensagem estática dos meios tradicionais.

Mas é justamente na gestão desta capacidade sobre a acção criativa que a iatrogenia pode trazer consequências mais adversas (e algumas mesmo irreparáveis) sendo imprescindível avaliar o risco de intervir nas mais diversas situações:

• Nas decisões de rebranding que alteram atributos suficientemente valorizados e com impacto directo nas vendas. A marca é o “último bastião” que pode sustentar a diferenciação do negócio;

• Na alteração de conceitos criativos devidamente consistentes e consolidados na cultura das suas audiências – exemplos da Coca-Cola e da John Lewis, que se tornaram ícones da época natalícia e são referências na nostalgia associada a este período do ano, ou o conceito peculiar de comunicação local em outdoors e mupis da Super Bock (entre muitos outros casos);

• Na introdução de campanhas que canibalizam o incremento de vendas ou outros objectivos de conversão em paralelo – o conhecido estudo de Steven Tadelis (Univ. Berkeley) sobre a eficácia da publicidade paga pelo eBay em search ads demonstrou que o investimento em branded keywords era canibalizado pelas pesquisas orgânicas para a mesma palavra devido ao peso do brand building do eBay nas escolhas prévias dos consumidores, dando força à sua relevância orgânica e tornando irrelevante, neste caso, o investimento em performance;

• No corte do investimento em brand building perante ciclos económicos que potenciam justamente a valorização dos activos da marca, o reforço do seu market share e do share of voice perante a concorrência, sobretudo se esta reduzir a sua posição;

• Na aplicação de capital em qualquer iniciativa de marketing sem uma demonstração clara do seu retorno através de uma framework de analytics dedicada.

Os estudos da Gartner sobre o impacto das decisões operacionais nos negócios revelam que há um acentuar na tomada destas decisões com regimes de excepção às regras de controlo implementadas, nomeadamente, decisões que não consideram a sua implicação financeira, e que podem custar mais de 3% dos lucros.

De acordo com o Gartner Decision-Making Model, este tipo de intervenções tem uma taxa média de frequência de 30%, concentrada essencialmente nos ajustes de preço e em novas campanhas de marketing (seguido das optimizações no produto ou serviço e em tácticas promocionais non-price).

O exemplo da Prevenção Quaternária

Num ambiente altamente populista de novidades à sua volta, os decisores de marketing devem questionar qualquer acção interventiva sobre as suas marcas, numa atitude convicta tendo como exemplo a prevenção quaternária – “Primum non nocere” – Primeiro, não prejudicar” (princípio da não-maleficência).

Sendo uma referência fundamental da ética médica, o conceito de prevenção quaternária surge pela tomada de consciência dos prejuízos iatrogénicos, tendo como objectivo diminuir a sua incidência, através de um conjunto de acções que devem prevalecer em qualquer outra opção preventiva.

A Interbrand, que produz o ranking anual World’s Most Valuable Brands, estabelece o valor da marca com base na previsão de ganhos incrementais futuros e no cálculo do seu valor actual líquido, considerando o desempenho dos produtos ou serviços associados; o peso da marca no processo de decisão de compra e a sua força.

Estudos sustentados nesta avaliação apontam que a sua contribuição média para a própria valorização das empresas de produtos de grande consumo (as que mais investem em marketing) pode ir até aos 60%.

Quanto maior for o valor da marca, menor será o seu risco a pagar pela sua reputação e o custo na captação de investimento para fomentar a sua actividade económica, social e humanista, pelo que qualquer intervenção tem um preço – primeiro, não prejudicar a marca.

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