A Cecilia Giménez que há em nós

judite-mota

Para quem estava distraído com outros assuntos mais importantes, uma pequena introdução: Cecilia Giménez é aquela avozinha espanhola que restaurou o Cristo numa igreja de Borja com resultados desastrosos e que se tornou famosa nas redes sociais e não só.

E o que é que a simpática e prestável velhinha tem a ver connosco e consigo em particular?

A si nunca lhe passaria pela cabeça fazer o que ela fez, por muito jeito que tenha demonstrado nas aulas de trabalhos manuais e de educação visual – lembra-se daquele mural em papel de cenário que era o orgulho da sua mãe? Mas não, nunca lhe passaria pela cabeça pegar numas latas de tinta compradas em promoção na loja da aldeia, nuns pincéis e numas trinchas e ala que se faz tarde para a capela, com a intenção (são sempre boas as intenções) de devolver o brilho ao Cristo, literal e metaforicamente.

A si nunca lhe passaria isto pela cabeça.

Onde é que já se viu, alguém formado em Gestão e Administração de Empresas com uma especialização em Marketing, fazer alterações na obra de um pintor, alguém cuja formação artística e talento inato o habilitam a pintar Cristos, Últimas Ceias, Adorações ou Crucificações.

Por muito que você seja um apreciador confesso da técnica chiaroscuro de Caravaggio, não faria o mínimo sentido propor-se a restaurar uma pintura. Afinal não é o seu métier. Na verdade, o que é que você sabe de complementaridade de cores, do equilíbrio das formas, da subtileza da composição?

Pouco. Não o suficiente para se pôr a fazer alterações artísticas. Nunca numa obra de arte. Menos ainda numa obra de arte sacra.

Ainda se fosse uma coisa menor… tipo um anúncio. Não vem mal nenhum ao mundo se, mesmo sem saber nada de equilíbrios, pegar num layout e aumentar isto ou diminuir aquilo; se mesmo sem saber muito de cores tirar o fundo azul e pôr antes vermelho; que mesmo sem ter estudado tipografia possa trocar uma fonte por outra, fazer crescer o logótipo, o selo, o splash, ou todos em simultâneo… afinal, é só um anúncio, não é uma obra de arte.

Em cada um de nós – sim, em mim também – há uma Cecilia Giménez escondida à espera de uma oportunidade de fazer uma coisa que a tire da rotina, quer seja a das orações e dos bocadillos, ou da rotina do Excel e do Market Share. Uma coisa excitante, divertida, criativa.

A Cecilia Giménez que há em nós não quer fazer mal a ninguém, nem estragar nada. Na verdade ela quer melhorar as coisas.

Mas em vez de pegar no telefone e ligar para quem sabe, pega no pincel e tenta fazer ela mesma. Se um layout (e quem diz um layout diz qualquer outra coisa) não lhe parece bem, pegue no telefone e peça ao director de arte (pois, arte!) para fazer de novo.

Não pegue no “pincel”. É quase certo que vai borrar a pintura.

P.S. A Cecilia Giménez tornou-se um fenómeno da cultura popular online. É só fazer uma pesquisa no Google e podemos inclusivamente restaurar com a técnica dela qualquer imagem que nos apeteça.

Texto de Judite Mota, directora criativa Young & Rubicam Redcell

Fotografia de Paulo Alexandrino

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