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A Brasileira: O berço da famosa “bica” e da cultura onde cada parede conta uma história
A história da pastelaria Brasileira do Chiado está profundamente entrelaçada com a cultura, a arte e a evolução do gosto português pelo café. Fundada em 1905 por Adriano Teles, a Brasileira nasceu da visão de um homem que acreditava que a economia e a cultura deviam caminhar juntas.
Teles trouxe o café brasileiro para Portugal numa época em que os portugueses estavam mais habituados ao café africano, enfrentando a resistência inicial do povo pelo sabor mais amargo da bebida. Ainda que não fosse imediatamente um sucesso, Adriano Teles acreditava no produto que tinha e estava determinado a mudar essa percepção.
Foi assim que nasceu a “bica”, expressão tão lisboeta para café, começava assim a dar os primeiro passos aquele que, para quem a conhece como ninguém, a descreve como o “berço da cultura” (mas já lá vamos).
Sónia Felgueiras, diretora de Marketing do grupo “O valor do Tempo” que em 2020 comprou a Brasileira do Chiado, elogia a visão do fundador do espaço que, por ser “tão crente do bom produto que tinha”, durante três anos “oferecia uma chávena de café a quem comprasse outras iguarias também importadas do Brasil”.
“Muitas vezes preparava ele o próprio café para garantir que o café, que o produto final, era exatamente aquilo que deveria ser. E ao fim de três anos cheguei numa batalha e consegui que os portugueses passassem a gostar do café e dizem que foi aqui que nasceu a palavra ‘Bica’ e que sim, que ele continuou verdadeiramente o gosto do café em Portugal”, conta a responsável.
Quanto ao significado desta palavra, há quem diga que é uma sigla para “beba isto com açúcar”, sendo esta a tese popular. No entanto, Sónia Felgueiras considera que não é esta a versão que consideram mais “credível”.
“A versão que nós acreditamos ser mais credível é aquela que conta que o café era feito numa máquina, da máquina era passado por uma cafeteira e a cafeteira vinha à mesa servir a chávena do cliente. Havia clientes que se queixavam que aquela transição entre a máquina e a cafeteira e depois da cafeteira para a chávena, fazia o café perder propriedades. Então, o Adriano Teles, o fundador da Brasileira, terá dito ao seu funcionário, traga-me o café da bica, que é a torneira da máquina. E nós acreditamos que essa é a versão mais viável”, indicou Sónia Felgueiras.
Cada canto deste célebre espaço conta a história de gerações de artistas que por lá passaram, de grandes conversas, convívios, tertúlias e até cenas de pancadaria.
“Quando o Grupo Valor do Tempo comprou a Brasileira em 2020, algumas pessoas desse grupo de tertúlias sentiam-se tanto em casa que abordaram-nos para fazer sugestões de como é que nos poderíamos reorganizar a Brasileira. E foi muito engraçado porque, o que quer que seja que nós fizéssemos, eles vinham dar opinião. Era a casa deles e é muito engraçado por isso. E eles continuam a vir cá todos os dias”, conta Sónia Felgueiras.
António Carmo, artista plástico, é um desses “tertulianos”, um dos mais antigos da Brasileira. Aos 76 anos, é presença assídua na Brasileira desde que tinha apenas oito anos de idade.
“Agora somos muito poucos, vou lá desde miúdo e hei-de ir até ao fim”, conta o artista plástico. As primeiras vezes que começou a frequentar o espaço foi pela mão da madrinha que ali o deixava enquanto ia fazer compras. “Ficava a ver os artistas, para mim eram todos artistas, e depois ficava ali a conviver. Tive ali encontros com o Almada Negreiros, com o Abel Manta, com a minha querida amiga Beatriz Costa, toda essa gente histórica que parava por ali”, relata António em conversa com a Marketeer.
Para a responsável de Marketing, a Brasileira “conseguiu atravessar o tempo justamente porque sempre esteve muito ligada à história e à cultura e nunca deixou de fora a ligação às artes”, tendo sido isso que “manteve a brasileira viva”. As figuras histórias estão marcadas desde logo à entrada, com a estátua de Fernando Pessoa, frequentador assíduo do espaço.
“Como Fernando Pessoa era um frequentador assíduo, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu, no dia do centenário do seu nascimento, ter uma estátua de bronze que foi colocada aqui mesmo e é muito fotografada”, conta Sónia Felgueiras.
Ao longo dos anos, a Brasileira tornou-se muito mais do que uma simples pastelaria; transformou-se num “ponto histórico e obrigatório”, como aponta António Carmo, de encontro de intelectuais, escritores e artistas, tornando-se parte essencial da história cultural lisboeta.
A pastelaria não só serviu como local de tertúlias e debates, mas também se tornou num espaço de promoção das artes. Prova disso foi a recente renovação das suas emblemáticas pinturas modernistas, num concurso que celebrou o centenário das primeiras obras expostas no café.
“As 10 obras que temos aqui foram de 10 novos artistas portugueses, vários perfis, várias idades, mas não foi a tentativa de fazer diferente, foi mesmo de celebrar os 100 anos da primeira geração de quadros e homenagear o fundador da Brasileira”, conta Sónia Felgueiras. Quanto às obras antigas, voltarão para as paredes do café, no final do ano depois de serem restauradas. “Estão a ser restauradas três obras de cada vez e, no entretanto, nós temos uma parceria muito estreita, felizmente aqui com o Museu Nacional de Arte Contemporânea, e as obras que estavam aqui, à medida que forem sendo restauradas, vão para o MNAC integrar a exposição e depois, no final do ano, voltam para aqui”, explica.
Hoje, a Brasileira do Chiado tornou-se um ponto turístico de destaque, mas, garante Sónia Felgueiras, mantém-se fiel à sua essência, promovendo iniciativas culturais que asseguram a continuidade da sua identidade artística e histórica. “É as duas coisas. É sem dúvida um ponto turístico, nós estamos no ponto central da cidade, é o Chiado, é um espaço super turístico da cidade, mas as artes na Brasileira estão mais públicas do que nunca”, afirma a responsável.
“A cultura aqui está mais viva do que nunca e temos muitos artistas e muitas pessoas ligadas à cultura e às artes a vir à Brasileira para admirar quer as esculturas em madeira, quer os quadros, quer todo este carisma histórico que a Brasileira tem”, frisa Sónia Felgueiras.
Já António Carmo lamenta que as gerações mais jovens não frequentem tanto o espaço, tendo os estrangeiros ganhado cada vez mais espaço nos últimos anos. Ainda assim, recorda com carinho as personagens “históricas e castiças” ao longo dos tempos.
“Nesse tempo os cafés eram históricos e a Brasileira era um deles, não paravam só pintores, era um ponto de referência e de cultura. Hoje já não é, os tempos são outros, mas nós continuamos lá e muito contentes com a atenção especial que nos dão, mas já não é a mesma coisa, a idade não perdoa”, conta.
António Carmo afirma que foi ali que se tornou o homem que é hoje: “Vou todos os dias até morrer, só não vou quando não posso. Foi ali que aprendi tudo o que sei na cultura, foi ali que conheci gente importante na cultura, era a internet dos dias de hoje em termos culturais. Foi o berço da cultura.”
E o futuro?
A Brasileira do Chiado é um dos 164 espaços integrados na iniciativa “Lojas com História”, um programa da Câmara Municipal de Lisboa (CML) que visa reconhecer, preservar e dinamizar o comércio tradicional e histórico da cidade. Lançado em 2015, o programa distingue estabelecimentos comerciais que se destacam pelo seu valor histórico, cultural ou social, atribuindo-lhes a distinção de “Loja com História”.
Apesar de muitas lojas com várias décadas correrem o risco de serem expulsas dos espaços pelos respectivos proprietários, num contexto de pressão imobiliária nos grandes centros urbanos, Sónia Felgueiras assume que não tiveram medo que tal acontecesse com a Brasileira, não só por estarem integrados no programa “Lojas com História”, como também pelas iniciativas que o grupo que detém a pastelaria levou a cabo para a manter viva.
“Não tivemos medo, mas nós também não ficamos à espera que as coisas aconteçam. Nós fazemos por dar vida e alma aos negócios que nós temos, e a Brasileira não deixa de ser um negócio, não é? O que fizemos foi ir à história, procurar motivos que nos permitam continuar a comunicar, respeitando a história da Brasileira, que nos desse oportunidade de manter viva a vida cultural e história do espaço”, começou por indicar.
E deu exemplos dessas iniciativas: “Nós, em 2021, lançámos o jornal digital Mensagem de Lisboa, que fala sobre a cidade, os vizinhos, aquilo que acontece na cidade, mas numa lógica de jornalismo construtivo, vamos sempre buscar histórias das pessoas que moram na cidade. Agora trouxemos este concurso de pintura para aqui, e a nossa ideia é continuar a trazer para a mesa do café a cultura, porque é muito disso que vive a Brasileira também.”
O espaço continua assim vivo para quem por lá passa, que ali bebe a sua “bica” e admira os quadros que enchem as paredes altas do estabelecimento, e para quem por lá permanece em amena cavaqueira com os amigos de uma vida. Com mais ou menos turismo, uma coisa é certa: a Brasileira do Chiado continua a ser um espaço de passagem obrigatória.