O novo precisa de amigos
“Em muitos aspectos, o trabalho de um crítico é fácil. Arriscamos muito pouco e ainda assim desfrutamos de uma posição acima daqueles que se oferecem a si mesmos e ao seu trabalho para que os julguemos. Prosperamos com as nossas críticas negativas, que são divertidas de escrever e de ler. Mas a verdade amarga que nós críticos devemos enfrentar é que, no grande esquema das coisas, uma peça de lixo medíocre tem provavelmente mais razões para existir que a nossa crítica que lhe aponta o dedo. Ainda assim há momentos em que um crítico arrisca alguma coisa de verdade: quando ele descobre e defende o novo. O mundo é, muitas vezes, pouco amável com o novo talento, com as novas criações. O novo precisa de amigos.”
Estas palavras ficaram famosas na boca de Anton Ego e na voz de Peter O’Toole, no filme “Ratatouille”, e voltei a tropeçar nelas no livro “Creativity inc.”, de Ed Catmull, presidente e um dos fundadores da Pixar. Ed assina o melhor livro que já li sobre criatividade corporativa. Descreve quase fotograficamente o difícil caminho do sucesso numa empresa que se dedicou a fazer algo novo, que nunca tinha sido feito antes (o seu desafio pessoal, desde a criação da Pixar, era fazer a primeira longa-metragem em 3D num momento em que nem existia software que permitisse fazê-lo). Mas Ed vai mais longe neste livro: sistematiza de forma clara e inspiradora os critérios, decisões e o código de valores que foram sendo construídos na companhia, uma espécie de “cultura criativa sustentável” nas suas palavras, que tem permitido à Pixar continuar a ser a Pixar, mesmo depois de ter sido comprada pela Disney e ter cumprido 25 anos e 16 longas-metragens em 3D, muitas delas brilhantes, apenas uma fraquinha (digo eu).
Estas palavras, voltando ao discurso de Anton Ego, servem para ilustrar um dos meus capítulos preferidos: “e hungry beast and the ugly baby”. Ed refere-se à hungry beast como a fera que é preciso alimentar quando uma empresa tem sucesso e vai aumentando a estrutura, o que quase sempre leva à pressão de ter mais projectos a sair mais rápido, de ter todos os recursos aproveitados, de manter a besta alimentada. E o que ele chama de ugly baby é o novo, o diferente, o extraordinário. Segundo ele, o segredo do sucesso da Pixar é conseguir que a besta e os bebés coexistam pacificamente, mantendo diferentes forças em equilíbrio. Porque isso de melhorar os processos, torná-los mais fáceis e baratos, é algo no qual trabalham sempre, mas não é o objectivo da Pixar. O objectivo é fazer algo extraordinário. E parte do trabalho de Ed como presidente é proteger o novo de pessoas que não entendem que, para que o extraordinário apareça, ele passa por fases menos extraordinárias. Dá o exemplo da larva transformando-se em borboleta, que só sobrevive porque está dentro de um casulo. E retoma o espírito das palavras de Ego: “Dar um feedback negativo pode ser divertido, mas é menos valente do que apoiar algo que está por comprovar e dar-lhe espaço para crescer.”
As sábias palavras de Anton Ego e de Ed Catmull fazem-me pensar no nosso trabalho na publicidade. O nosso novo é diferente do que busca a Pixar, mas ainda assim é um novo: somos as boas ideias que conseguimos produzir para os nossos clientes. E a melhoria dos processos, a rapidez, corte nos custos, o cliente mais satisfeito, tudo importa e está na agenda do dia, mas não é o objectivo de nenhuma empresa que vende criatividade. O ue servem os clientes. O nosso novo, como o novo da Pixar, precisa de amigos. Mas hoje, nas agências, é mais fácil arranjar esses amigos nos festivais do que no trabalho real. Um júri de publicitários acode aos festivais para premiar o que é novo. Por isso as multinacionais criaram esse jogo perverso de fazer trabalhos para festivais, para ganhar essa reputação de quem faz o novo, mesmo que o novo só apareça em Cannes e em dezenas de sucedâneos. Porque o novo real, o da rua, encontra inimigos por todo o lado, todos os dias. Dentro da agência e no cliente. O novo no início parece esquisito, arriscado, não parece igual a coisas que já vimos, não está conforme as regras nos slides de benchmark e muitas vezes não passa bem nos testes. O novo, quando nasce, é um bebé sujo, que precisa de tomar banho e ser vestido. O novo exige ser acarinhado, mas como raramente gera consenso, poucas vezes sobrevive. Por isso é mais fácil fazê-lo de propósito para os festivais. A propósito disso, se o leitor ainda não leu, vale a pena buscar o artigo “e end of false recognitions” que Amir Kassei, CCO da DDB, escreveu sobre o tema para a Campaign.
Distâncias à parte, e com humildade, este capítulo do “Creativity Inc.” fez-me lembrar os bons tempos da Lowe, em Lisboa, quando queríamos fazer algo novo e diferente, eu e o João Coutinho. Também nós, à nossa escala, quisemos criar uma cultura criativa na agência, que entretanto foi devorada pela grande depressão pós-2007. Numa das apresentações que fizemos dentro da agência, para pôr em comum o que devia ser o nosso trabalho, usámos essa mesma imagem a que se refere Ed: as ideias novas são bebés frágeis que precisam de ser protegidos. O título desse slide era “Não atirem pedras aos bebés”, e servia para explicarmos que, tal como nenhum bebé nasce lavado, vestido e a cheirar a perfume, também as ideias nascem sujas e desorientadas e precisam de ser cuidadas e alimentadas, antes de serem grandes e apresentáveis. Esse slide continua muito actual. Não atiremos pedras ao novo. Mas fazer do novo essa espécie de protótipo de que fala Amir, uma espécie de alta costura que ninguém compra, tem algo de trampa, como dizem nuestros hermanos, e leva-nos ao descrédito. O novo precisa de amigos. O novo é o objectivo. O novo é o único que temos para vender e, quando é aplicado com relevância, é o melhor meio de exercer influência nas pessoas e trazer resultados para os clientes.
Texto: Susana Albuquerque
Directora criativa DDB Madrid