Like ou como a cultura do malmequer pode matar a criatividade
Hoje, em vez de procurarmos a internet pela liberdade de informação e ligação que ela nos oferece, procuramo-la essencialmente na busca de aceitação social. A procura de um like pressupõe um plano, e esse plano é cada vez mais uma construção do exterior para o interior. E o padrão de “posts” efectuados por pessoas e marcas é cada vez mais afectado pelo resultado em likes que “posts” ou likes anteriores tiveram, numa procura de aceitação social.
O aprimorar dos instrumentos de profiling nas redes sociais com base nas nossas escolhas e likes contribui para uma maior conformidade, na medida em que o sistema faz uma parametrização de cada tipologia de utilizador ao ponto de lhe poder entregar sempre o que ele “exclusivamente deseja”. Mas, na verdade, este “desejo exclusivo”, criado na base dos likes, “posts” e comportamentos de compra online, não determina o valor qualitativo desses comportamentos. E quando isso serve para avaliar a comunicação e o sucesso da criatividade, estamos perante uma análise que enferma de superficialidade.
Like não significa adiro – like significa essencialmente estou aqui. É um processo de amplificação pessoal através da minha integração numa opinião socialmente validada. Gostar não pressupõe um porquê. Posso gostar sem sequer pensar nisso. Posso gostar porque acordei bem disposto, porque os meus amigos já gostaram (69% dos likes acontecem por isto, segundo a Lab 42 Research), porque gosto de uma miúda que gostou ou porque o meu patrão gostou.
Há toda uma conveniência no like. Não totalmente uma preferência:
Like é efémero e aleatório. Só no Facebook existem 4,5 biliões de likes diários para 1,5 biliões de utilizadores – a essa velocidade é impossível haver discernimento qualitativo;
Like é uma egotrip. Serve para eu me expor através da integração;
Like é unidireccional. Não há resposta a um like (pode haver um comment mas é diferido);
Like é inquestionável. Não sei porque foi feito;
Like é quantitativo. E não se sabe a quantidade “de quê” que exactamente mede. Não uma prova qualitativa, uma garantia de compromisso emocional ou material.
Por que é que tudo isto é problemático para a criatividade? Os criativos resolvem problemas de narrativa e expressão. O seu papel é aumentar a cultura. Pode não produzir cultura mas torna-a visível, amplifica-a. A missão é construir histórias de marca, originais e distintivas, capazes de criar adesão emocional, memória, provocar alterações na percepção de valor e mudar comportamentos.
Ser criativo é construir em cima da verdade do produto – se ele não tem uma verdade relevante, através da criação de uma forma verdadeira de o tornar relevante – neste processo produzimos cultura. Essa verdade e originalidade são o que o torna um “produto” bom, cultural.
Isto deixa-nos a nós, criativos – veículos activadores da cultura popular – com uma responsabilidade enorme entre mãos. Como dar profundidade a um like? A procura do efeito like tornou-se na principal preocupação de quem trabalha em marketing e comunicação. Na criatividade, a cultura do like é já um mito e traduz-se na cultura do malmequer. Tal como miúdos ao desfolhar a flor, um acto descomprometido, hoje, temos uma cultura de decisão cada vez mais influenciada pelo poder de um like.
A cultura do malmequer é uma metáfora do problema que um criativo enfrenta num mundo cada vez mais dominado pela bidimensionalidade do like e cada vez mais curvado perante o seu aparente poder. A cultura do malmequer compreende uma adesão estética com base numa perspectiva pessoalizada da realidade, e não uma análise equilibrada de dada proposta criativa.
O efeito like leva a decisões Hype: Higiénicas – criatividade de revisitação de arquétipos; Ylogicas – sem sentido analítico; Preconceituosas – que “pensa” que descodifica o consumidor; Eficientes – rápida e funcional.
Não pretendo fazer a diabolização do like. Existem méritos nesta ferramenta social que uso e continuarei a usar. O problema está na penetração rápida do seu absolutismo nos vários patamares da nossa actividade. Aquilo que um like não dá, que é profundidade narrativa. Se não existe uma história não existe interesse, se não existe interesse para lá do funcional, não existe valor.
Quando lidamos com factos e narrativas lineares, interpretamo-las com espírito analítico, quando somos incluídos numa boa história, este sentido analítico é adocicado por uma assimilação de conteúdo emocional. Essa é a diferença entre boa e má criatividade. Tem que haver profundidade conceptual para que se estabeleça uma relação de valor diferenciado e criação de cultura.
Com a cultura do malmequer os criativos ficam enjaulados na necessidade de responder com mecanismos que sejam despoletadores de likes. Isto resulta em trabalho tendencialmente mimético, capaz de reproduzir o que já teve sucesso.
A ditadura do like leva à “comoditização ideológica”, à “comoditização conceptual”, à não diferenciação, leva a perda de valor profissional e a uma situação de paridade conceptual num mundo de paridade funcional. E daqui surge a pergunta: para que serve o talento numa disciplina “comoditizada”?
Texto Pedro Pires, Director criativo Ivity
Fotografia Paulo Alexandrino