As marcas também se abatem
Em 2003, fui pela primeira vez à Bread & Butter em Berlim. À porta percebi onde estava. Aquilo não era uma feira onde hipsters e fashionistas se encontravam para fazer umas festas. Era uma arena altamente competitiva e agressiva onde o investimento em design e na criação de marca era defendido com unhas e dentes pela organização e encarado como uma questão de vida e morte pelos expositores. A placa, nessa entrada, que explicitava qualquer coisa como “people from Inditex and H&M are not welcome”, era a prova mais evidente disso.
Cada marca presente num evento como este (aliás, qualquer marca em qualquer sector) suporta grandes investimentos em investigação, design, produção e promoção sempre na procura da originalidade, sempre na criação de valor acrescentado aos seus produtos de forma a ganhar ascendente sobre a concorrência, mais visibilidade na imprensa e junto de compradores e consumidores.
É evidente que a entrada de operadores verticalizados veio democratizar o mercado da moda, tornando-o mais acessível a mais pessoas, mas ao mesmo tempo essa entrada parece ter sido feita à custa do investimento das próprias marcas, que, lançando trends e estilos, os viam desde logo copiados e disponibilizados em tempo recorde por estas novas marcas verticais.
Desde essa altura, muitas destas marcas contornaram esta questão, puxando o universo do design para a sua área de influência, com alguns nomes importantes a assinarem colecções, mas a verdade é que no site da Bread & Butter continua a existir uma advertência clara: os visitantes da Bread & Butter não podem ser estudantes, ter qualquer relação com a indústria da moda enquanto empregados, ou vir da indústria verticalizada de moda. Este é só um exemplo do que está a acontecer em todos os sectores, com a vitória do mercado dos descontos e com a crescente importância das marcas próprias na distribuição moderna.
A distribuição, respondendo às tendências de mercado, ataca em todas as frentes:
- com descontos, “partilhados” com os produtores;
- com marcas próprias, cujo produto é comprado a preços baixos em origens que estão pelo menos na sombra;
- com pressão nas margens, no preço de ocupação de linear e na visibilidade em ponto de venda;
- com a entrada em novos sectores.
Segundo a Nielsen, referida em reportagem do “Dinheiro Vivo”, no quarto trimestre de 2011, mais de metade (51,5%) das vendas totais dos super, hipermercados e mercearias eram relativas a produtos de “marca própria”. Estes valores já ultrapassam o de mercados como o Reino Unido, que está nos 42% do total e chega aos 54% no sector das bebidas e alimentação.
Esta escalada é tão visível que o próprio patrão da Tesco, Perry Leahy, veio dizer que existe um valor natural para o limite de crescimento das “marcas próprias”, e que não se deve forçar a escolha nos consumidores.
E nem o argumento que essas “marcas próprias” são também produzidas pelos mesmos produtores que as outras marcas parece ser aceite.
Segundo João Paulo Girbal, da Centromarca, «apenas 6% dos fabricantes de marca também fornecem produtos de “marca própria”». Para ele o crescimento das “marcas próprias” provoca «o aumento das importações, o que agrava a destruição progressiva do tecido produtor nacional e leva a uma destruição de emprego estável e especializado no sector produtivo».
Em Inglaterra, e especialmente no sector alimentar, discute-se agora a origem de produção desses produtos de “marca branca” e do reflexo disso na sua qualidade, mas, na opinião geral dos consumidores, estes são ainda considerados de boa qualidade e como uma boa opção económica.
Este movimento de “branquificação” da economia está a tornar a vida cada vez mais difícil para as marcas e para quem vive das suas actividades em toda a extensão da cadeia de valor – dos produtores aos designers.
A esta tendência discount podemos acrescentar as mais apertadas restrições legais à comunicação e presença de marca em espaços públicos e ao crescente poder de controlo da comunicação por parte do consumidor, com o advento dos DVR. Dá para perceber que muita gente comece já a falar do fim das marcas como cenário provável do ponto de vista económico.
Vamos extremar a visão. Se o cenário de crescimento de “marcas próprias” continuar:
1 As marcas deixam de poder estar presentes na distribuição, pois os custos dessa presença tornam-se incomportáveis. Algumas podem optar por abrir canais próprios, outras pura e simplesmente desaparecem;
2 O retalho continua a investir na criação de produto de “marca própria”, aprimorando os segmentos e as gamas. Mas não tem a estrutura de investimento em design e em marketing de produto. Com o aprofundamento da oferta iniciam-se os problemas de diferenciação e valor acrescentado entre produtos;
3 a) Na falta de outras, o retalho é obrigado a começar a adoptar as mesmas estratégias de investigação, criação, desenvolvimento e implementação de marca nas suas “marcas próprias”, numa tentativa de diferenciação de segmentos, gamas e de outras marcas próprias de outros operadores de retalho. E inicia-se o ciclo de marca novamente, com todas as incumbências que hoje ele tem, dando um final paradoxal a todo o movimento de “marca própria”;
3 b) As “marcas próprias” estagnam por falta de viabilidade económica do modelo levado ao seu extremo e o consumidor perde poder de escolha, diversidade e garantia de qualidade.
Um mundo sem marcas é um mundo com menos trabalho qualificado, com menos poder nos produtores e mais desemprego. É um mundo com menos escolha, com maior probabilidade de subida dos preços, menor poder do consumidor, maior cartelização. É um mundo menos democrático.
Não se pretende fazer aqui um discurso de diabolização da distribuição moderna ou do retalho de moda baseado na verticalização, em ciclos curtos e preço baixo. Na presente situação económica são estes movimentos que garantem a subsistência de grande parte das populações em muitos países da Europa. É importante que existam e têm o seu lugar em economias contemporâneas e democráticas. O problema são as implicações em toda a cadeia de valor de uma marca a médio prazo. O problema é o excessivo desequilíbrio de poder que existe hoje entre as marcas e quem faz a sua distribuição, e o impacto que isso tem nas pesadas estruturas empresariais e produtivas que as suportam.
Sejamos honestos, muitas marcas merecem o que está a acontecer. Tornaram-se preguiçosas e indigentes, confiando no valor acumulado para a manutenção do status quo, assumiram como garantido o seu peso no mercado, com cenários bidimensionais, onde os bastidores se tornam visíveis e a magia desaparece.
Procuram a paridade, numa corrida cuja estratégia é não atacar porque isso vai provocar a ira da concorrência e “nós gostamos disto morno”.
Não se ataca, mantém-se a corrida num simulacro, avançando apenas até ao momento exato de não perder, sem risco, numa bonomia entediante. O consumidor desacredita e inicia-se o processo de desvalorização de marca – “são todas iguais, logo escolho as ‘brancas’ que são mais baratas”.
Esqueceram-se que a luta é agora em todos os planos – começando dentro do próprio circuito de vida e comercial dos produtos até à sua visibilidade em casa dos consumidores. Terão que se lembrar que têm que ser verdadeiras, que o cinismo presente em muitos departamentos de Marketing, que, ou tomam por idiota o consumidor, ou usam o preconceito ou as suas próprias limitações, ou os condicionalismos do corporativamente correcto como base científica de abordagem ao mercado, é do passado e que já não existe uma estabilidade concorrencial ou lealdade por parte do consumidor.
A única salvação das marcas é fazer aquilo que é essencial para que sejam na verdade marcas – criar diferenciação, acrescentar valor real, procurar a inovação, agilizar a distribuição, diversificar a oferta e a distribuição.
E lembrarem-se que aquilo que as separa das “próprias” é criarem promessas de valor emocional. Contarem histórias. Porque com crise ou sem crise, e mesmo num hipotético mundo em que só existam descontos, vamos continuar a ser humanos.
Texto Pedro Pires, Director criativo Ivity
Fotografia Paulo Alexandrino