
“A inteligência artificial nunca se pode sobrepor à vontade dos titulares, dos autores.”, Miguel Carretas, diretor-geral da Audiogest
Nos últimos anos, a transformação digital tem impactado profundamente a indústria musical, trazendo novas oportunidades, mas também desafios significativos, especialmente no que toca aos direitos de autor. A inteligência artificial (IA) surge como um fator disruptivo, levantando questões fundamentais sobre a autoria, a proteção dos criadores e a sustentabilidade do setor.
Neste contexto, Miguel Carretas, diretor-geral da Audiogest, participou nos “Diálogos Culturais Luso-Brasileiros” em São Paulo, no Brasil, onde debateu precisamente estas questões. Em entrevista à Marketeer, reflete sobre o impacto da IA na música, os desafios da regulamentação e a necessidade de uma cooperação mais estreita entre Portugal e o Brasil para fortalecer a proteção dos direitos dos autores e artistas no universo digital.
Qual foi o principal objetivo da sua participação nos Diálogos Culturais Luso-Brasileiros em São Paulo?
Os Diálogos Culturais Luso-Brasileiros visam aprofundar, neste caso, uma relação entre os dois países num conjunto de áreas culturais e com especial incidência nos direitos de autor e direitos conexos. A minha participação centrou-se na inteligência artificial, nas oportunidades e nos desafios que ela cria, designadamente na área da música.
Quais são os maiores desafios que a inteligência artificial representa para os direitos de autor neste sector da música?
A inteligência artificial pode ser uma extraordinária ferramenta ao serviço da criação e, desse ponto de vista, enquanto ferramenta, tem pontos positivos.
Pode dar um exemplo aplicado à música?
Há pouco tempo foi criada uma nova música dos Beatles com recurso à inteligência artificial. Graças a ela foi possível limpar todos os instrumentos e utilizar a voz do John Lennon e recriar aquilo que seria a vontade dele, mas isto teve autorização de direitos de autor. O reverso é o lado mau. Quando a inteligência artificial começa a ser utilizada não como uma ferramenta de criação, mas como um substituto à criação humana é que que começam os perigos…
Porque já não é criação humana?
A inteligência artificial é capaz de produzir novidade, mas nunca criação. A criação é exclusiva do género humano e a Inteligência artificial não é capaz de produzir sentimento, alma, como uma marca distintiva… a alma criativa, o chamado estado de espírito, que não tem nem nunca terá. Quando nós tentamos substituir a criação por uma indicação que damos a uma máquina estamos perante enormes desafios.
O desafio da criação humana versus o que gera uma operação de uma máquina?
Uma coisa é a criação humana, outra é a máquina e lidar com esta nova realidade é o grande desafio que a Humanidade enfrenta. A máquina gera através de um comando, de um pedido nosso, mas é um substrato. Tudo o que a inteligência artificial cria é com base naquilo que existe, tudo aquilo que está carregado no sistema. É um produto do pensamento humano, mas artificial. Por isso, chegados aqui, duas questões fundamentais que se colocam.
Quais?
É importante pensar-se a inteligência artificial e os direitos dos criadores. O primeiro desafio relaciona-se com aquilo que é utilizado nos modelos de treinamento, ou seja, os motores de inteligência artificial usam obras, músicas, melodias, textos literários musicados para alimentar o sistema. Aquilo que nós defendemos quanto a isso é uma questão muito simples, pois, como qualquer utilização de uma obra noutra, como qualquer utilização de material protegido por direitos de autor, é preciso autorização para ser utilizado.
Este é um princípio fundamental, o do consentimento. Consentimento de quem? Dos autores? Dos artistas e, quando se trata de música gravada, dos produtores. É essencial que quem criou dê consentimento a esta utilização. Esse consentimento é o que há de mais essencial e genuinamente humano neste processo. Isto não é só uma questão de dinheiro, como alguns tentam resolver a questão da inteligência artificial. Não. A inteligência artificial nunca se pode sobrepor à vontade dos titulares, dos autores. Estamos perante uma questão também moral.
Há que respeitar o direito ao nome, à voz, à imagem. As grandes empresas tecnológicas não podem pagar para calar a Europa. É disto que estamos a falar, o que nós estamos a falar é de um esbulho que está a ser feito, de uma apropriação, à cultura europeia, porque as grandes empresas tecnológicas pagam para calar a Europa, sustentando modelos de negócio que nem sequer são nossos. A Europa tem de pensar o que quer preservar e tem de criar normas que protejam os direitos dos autores.
A regulamentação vai ao encontro desta proteção?
O primeiro regulamento de inteligência artificial feito pela União Europeia, apesar de ser insuficiente, contém o essencial: o nível de proteção. Mas nós, temos que pensar muito bem o que queremos proteger. As grandes multinacionais tecnológicas estão a ameaçar os direitos de autor não os protegendo. E isso leva-nos a um segundo aspeto da questão.
Outro desafio?
Sim. Um aspeto que está aqui em causa é o output da máquina, ou seja, aquela “música”, aquele conjunto de sons criado artificialmente, não é criação porque é, de facto, uma máquina, não é criação. Do ponto de vista lógico e ontológico não é uma obra, porque não é um produto humano. Por isso, aqui não se coloca a questão dos direitos de autor. Não há direitos de autor para uma máquina e quem produz a máquina não tem direitos sobre o que a máquina produz.
Que exemplos concretos nos pode dar da forma como a inteligência artificial está a impactar a criação, a distribuição e esta proteção dos conteúdos musicais?
Quando temos uma plataforma digital, seja ela sustentada por anúncios ou subscrição, que disponibiliza música (e há várias), e se essas plataformas aceitarem e não tiverem mecanismos para garantirem que não disponibilizam resultados de inteligência artificial, se isso não acontecer, o que nós estamos a ter é inteligência artificial a competir com os criadores.
Ou seja, do universo de músicas disponibilizadas, imagine esta hipótese: 20 por cento das músicas são criadas por inteligência artificial e, como a inteligência artificial não tem direitos ou estes são impropriamente atribuídos a terceiros, o que acontece é que as criações humanas, criadas por artistas, por autor e por produtores vão só receber os 80 por cento e não os 100 por cento, porque 20 por cento foram atribuídos à máquina.
Se nós, indústria musical e plataformas, em diálogo, não tivermos modelos de negócio e uma preocupação seríssima de garantir esta distinção clara e também que não haja dividendos atribuídos a produtos de inteligência artificial, nós podemos ter, de repente, um grande “criador”, com um sistema de inteligência artificial, dedicado à música, que fica com 20 por cento dos direitos, ou alguém que tivesse carregado numa plataforma essa música como sendo uma obra sua, quando na verdade foi gerada pela máquina.
Ou seja, passa a haver uma competição entre a música artificial e a música criada pelo homem…
Isso não pode acontecer. Estamos a retirar valor, até monetário, às obras que são humanas. Isto é um exemplo concreto do impacto da criação e proteção dos conteúdos.
E que incompatibilidade aponta ao nível da distribuição?
Quando estamos a distribuir os direitos de uma plataforma é essencial não entregar direitos sobre resultados de inteligência artificial. Do ponto de vista da inteligência artificial como uma ferramenta útil para possa ser usada por entidades de gestão na distribuição de direitos, que é completamente diferente, como uma ferramenta, um auxiliar, isso é diferente. Aqui estamos a falar de uma operação técnica de distribuição de direitos e é evidente que essas capacidades são muito bem-vindas, porque elas podem reduzir o custo da distribuição, conferindo-lhe uma maior eficiência. De facto, já existem algumas tentativas de utilizar inteligência artificia, quer como uma das várias ferramentas a utilizar pelas entidades de gestão coletiva quer para a distribuição quer para identificar espaços onde faça sentido haver cobrança de direitos.
Durante o evento foi mencionado a necessidade de um ambiente digital mais justo e sustentável para os profissionais da música. Que medidas concretas considera essenciais para alcançar este objetivo?
Essa questão não é nova e tem a ver com duas divisões. A primeira é: que parcela do resultado final é atribuída ao setor que cria e estamos a falar de uma distinção entre quem distribui, as plataformas, e autores, artistas e produtores. Essa é a primeira grande divisão. E aí nós demos um passo importante com a Diretiva dos diretos de autor no mercado único digital no quadro europeu. Segunda questão: há uma grande discussão da remuneração de autores e artistas.
O que alegam as entidades que representam os artistas é que se ganha menos no ambiente digital do que ganhavam no mundo físico e é verdade. Sabe porquê? Por que o mercado português de distribuição física de música era de 115 milhões de euros e atualmente temos cerca de 30 milhões com o mercado físico e digital, mas também note-se que já batemos no fundo com 15 milhões e conseguimos inverter a trajetória negativa. Há poucos mercados que tenham descido tanto e tenham conseguido manter uma resiliência e continuar a apostar e investir.
Dizer que se ganha menos é uma evidência, porque os modelos de consumo mudaram e as pessoas não estão dispostas a pagar o mesmo pela música. Só havia uma forma de se ganhar mais, aumentando os custos para o consumidor, o que está fora de questão, e já agora aumentar os custos de distribuição… A pergunta que é preciso ser feita é: os autores e artistas ganham mais em termos de proporção total? Ganham mais, pois, os royalties são maiores e os artistas ganharam uma liberdade que não tinham, porque se acabou com os gatekeepers. Hoje qualquer pessoa pode, querendo, disponibilizar as suas músicas numa plataforma digital e estão acessíveis a todos e estão livres das opiniões das editoras.
Então por que se diz que muitos autores não conseguem viver das suas músicas?
Porque hoje qualquer pessoa que quer ser artista edita. É só querer. A questão não é que haja menos pessoas a atingirem o sucesso, a questão é que há muitos mais que não conseguem, porque como acabou este filtro à entrada, a escolha é feita pelo consumidor final. A seleção é mais abrangente e faz com que o mercado seja mais justo, é verdade, mas também deixa fora a capacidade de subsistência de muito mais gente que embora edite não consegue viver da música.
Que medidas aponta para subverter esta equação?
A primeira coisa que temos de saber é se há um problema de distribuição de remunerações entre artistas e autores? Na minha opinião não! O problema é que a música se desvalorizou, em geral. Há toda uma geração nova que ouve a música que está disponível na Internet, que já não compra música, como antigamente se fazia. O modelo de consumo de música mudou. Esta nova geração está disposta a pagar pelo consumo de música o mesmo que paga pelo ar que respira, ou seja, nada, porque os modelos gratuitos proliferam.
Então qual será a alternativa?
Criar uma consciencialização de que a música é um produto, até barato, e que tem de ser pago, no que diz respeito às plataformas digitais, através de uma subscrição. Nós defendemos medidas fiscais de incentivo aos serviços de subscrição, no qual o Estado até ganhava valor de impostos diretos.
E apresentou estas suas ideias às ministras da Cultura de Portugal e do Brasil durante este evento em que participou em São Paulo?
Falámos das grandes preocupações gerais da inteligência artificial e ficámos de desenvolver com a ministra da Cultura de Portugal estas questões.
Como é que avalia a cooperação entre Portugal e o Brasil no setor cultural, especialmente no que diz respeito à música e aos direitos dos autores?
É muito importante a troca de visões sobre a questão da cooperação sobre os direitos de autor. Curiosamente, Portugal e Brasil não tem exatamente a mesma visão quanto à importância destes direitos como alavanca de criação. O Brasil tem uma posição conservadora, pois vê os direitos de autor como um entrave à divulgação e ao acesso aos bens culturais e Portugal não tem essa posição.
Essa posição diferente no que diz respeito à proteção dos direitos de autor não afeta a cooperação entre os dois países, no campo da música em concreto?
Temos uma relação salutar. A música brasileira é ouvida em Portugal desde sempre e a uma escala muito significativa. É uma tradição portuguesa ouvir música do Brasil, mas o inverso não é necessariamente verdade. Não há tanta música portuguesa ouvida no Brasil. O que acontece é que os brasileiros gostam de música portuguesa quando a ouvem, mas não têm o hábito de nos ouvir. A nossa música é apreciada, mas tem de chegar lá de uma outra forma. É importante a nossa música ser exportada para lá, recorrendo a mecanismos de apoios.
Considera que estes diálogos culturais luso brasileiros, em São Paulo, serviram para estabelecer pontes, para uma cooperação mais musculada?
Sem dúvida. Foi assinado um protocolo para que esta cooperação continue. Isto é importante.
Depois desta troca de experiências e desta troca de contactos a vários níveis, não só entre governos, mas também outras entidades que representam o setor musical, o fundamental é manter estes diálogos abertos para estreitar laços e a exportação da música para o Brasil é essencial. Deixe-me dizer-lhe que, além da Ucrânia, Portugal é o único país da Europa, neste momento, em que o Estado não investe absolutamente nada na exportação da sua música.
Considera que estes diálogos entre Portugal e Brasil podem ser estendidos ao mundo lusófono?
Não só pode podem como devem! Aliás, por uma feliz coincidência, o ministro da Cultura de Cabo Verde estava em São Paulo a promover a música cabo-verdiana e esse embrião ficou e três pessoas que estiveram neste painel no Brasil vão estar no início de abril juntos num ciclo de conferências com música, em Cabo Verde. E lá estaremos a promover a ideia da irmandade que une os países que falam a língua de Camões.
É consensual que a Audiogest tem desempenhado um papel importante na defesa dos direitos dos produtores fonográficos. Como é que vê o futuro da gestão coletiva de direitos num mundo cada vez mais digital e globalizado?
Com esperança e com alento, com vontade de triunfar em Portugal e no Mundo, no mercado digital. Quando falo de esperança refiro-me a um caminho, a uma capacidade da música portuguesa ter de ser reconhecida no Mundo. É muito importante continuarmos esse caminho e a Audiogest continua a incentivar esse caminho junto do Estado. Os sucessivos governos de Portugal, numa posição absolutamente exemplar na Europa, têm ajudado à construção de um direito de autor europeu, centrado no homem e na sua criação. E esta é uma visão correta, porque os direitos de autor não são um empecilho à fruição cultural, são um incentivo cultural verdadeiramente livre.
Portugal tem a nível internacional uma visão positiva sobre a questão dos direitos de autor?
Tem tido uma posição muito equilibrada na defesa dos direitos de autor, sempre com um padrão de defesa louvável em relação a quem cria e os verdadeiros autores.