
Se fosse hoje, seria cancelada
Texto de Marlene Gaspar, Diretora Geral da LLYC.
Vivemos um tempo em que a sociedade está mais atenta ao impacto das mensagens publicitárias. O que há anos se aceitava sem questionar é agora escrutinado e, muitas vezes, cancelado. A evolução dos valores sociais impôs novas exigências às marcas, desafiando a criatividade a ser mais responsável. Um exemplo são as campanhas de Natal das operadoras, que têm abraçado novas causas e dado visibilidade a temas que antes não teriam espaço no meio publicitário, como as famílias monoparentais, o detox dos telemóveis ou o apoio aos séniores. Por outro lado, temos assistido a uma maior censura e à atualização dos códigos da comunicação.
Hoje, a publicidade abraça causas sociais. No passado, muitas campanhas refletiam estereótipos e valores datados que hoje seriam impensáveis. Veja-se a campanha da marca Salsaretti em 1995 no Brasil. O anúncio apresentava homens – “o último galã de novela” – que, com uma postura excessivamente confiante e frases de gosto duvidoso, transmitia uma visão machista e até homofóbica do que significa ser sedutor. Se na altura a mensagem era bem recebida, hoje seria duramente criticada por perpetuar estereótipos masculinos ultrapassados e por reforçar uma narrativa tóxica sobre masculinidade.
Em 1980, a farinha Branca de Neve lançou um anúncio com o Herman José e com a Helena Isabel, que se tornou icónico. Mas o detalhe da assinatura: “a preferida das donas de casa” seria agora considerado antiquado e provavelmente geraria manifestações de desaprovação.
Já a campanha de lançamento da botija Galp Pluma baseava-se numa ideia simples: destacar as vantagens do produto. A botija era tão leve que uma mulher podia carregá-la “com uma perna às costas”, neste caso, com uma bilha às costas. “Pluma” remetia para essa leveza e a protagonista, uma mulher sensual e provocadora, parava o trânsito, deixando todos os homens embasbacados. Como disse recentemente Paolla Oliveira sobre o Dia da Mulher: “Continuam a reduzir-nos a um corpo.” Imaginem se o anúncio fizesse piada com a palavra “bilha”! Se na altura o humor implícito passou sem polémica, hoje seria certamente acusado de sexismo e objetificação da mulher, podendo até ser retirado do ar.
Estes exemplos demonstram que a comunicação mudou – e bem. Alguns chegam a virar piada, pois “comédia é igual a tragédia mais tempo”, segundo a definição que já foi atribuída a Mark Twain, Carol Burnett ou Woody Allen. Ou seja, com o devido distanciamento, conseguimos rir do que um dia foi ofensivo, desastroso ou trágico. Mas, no contexto atual, surge a questão: a publicidade estará a tornar-se excessivamente policiada? A sensibilidade acrescida trouxe discussões importantes, mas também corre o risco de asfixiar a criatividade.
O desafio para as marcas é encontrar o equilíbrio certo. A publicidade tem um papel cultural e social relevante e deve refletir a evolução da sociedade sem se tornar refém de uma hiper-sensibilidade paralisante. Seguramente, se fizermos este exercício daqui a cinco ou dez anos poderemos questionar-nos sobre como foi possível algumas campanhas dos dias de hoje não terem sido censuradas. E essa também é a magia da publicidade.