Mais desconfiado e racional. Deloitte traça perfil do consumidor em tempo de incerteza
Os tempos são de incerteza. Isso é certo. Mas com 2023 ao virar da esquina, as empresas e marcas precisam de fazer planos, traçar metas e objectivos, bem como estratégias para atingir esses mesmos objectivos. Mas como? Numa apresentação sob o mote “Que certezas num mundo incerto?”, João Matias Ferreira, associate partner da Deloitte, e Filipe Melo de Sampaio, partner da Deloitte, ofereceram algumas luzes no palco da 19.ª Conferência Marketeer.
Segundo João Matias Ferreira, encarregue de passar em revista os vários factores que nos levaram ao contexto actual de incerteza – e a um futuro próximo também de alguma indefinição –, inflação, adaptação pós-pandemia, guerra no continente europeu e tensão política entre alguns dos países mais determinantes para o comportamento da economia são alguns dos argumentos que justificam a situação que vivemos (marcas e consumidores).
Inflação histórica
No que à inflação diz respeito, João Matias Ferreira sublinha que estamos perante uma inflação de preços a uma escala que não se registava há 30 anos, em Portugal, com um crescimento de cinco vezes em apenas 12 meses.
Se, por um lado, seria de esperar alguma inflação após o período pandémico – com o crescimento das intenções de consumo e do consumo efectivo –, por outro, verificamos que existe uma disrupção adicional da cadeia de abastecimento, bem como outros factores que não seriam tão fáceis de prever, como a invasão da Ucrânia e os potenciais problemas no fornecimento de energia.
Ainda assim, a bonança após a tempestade parece não estar longe. Hoje, a inflação é superior a 10%, mas o associate partner da Deloitte aponta para uma tendência de normalização entre 2023 e 2024, «Estamos agora a assistir a um pico de inflação», afirma o responsável, tranquilizando a plateia.
Novos hábitos de consumo
Embora a tendência seja de normalização, a inflação continuará a fazer parte do dia-a-dia dos cidadãos, levando a mudanças de hábitos. Ora, se gastamos mais para obter menos quantidade, é natural que existam consequências directas na forma como distribuímos o orçamento, ou seja, na forma como gastamos. Grandes compras, como carros e casas, acabam por ficar para segundo plano.
Como se têm alterado as intenções e hábitos de consumo?
– Os consumidores mostram-se mais interessados em experiências e menos em produtos (considerando os próximos 12 meses). Neste caso, estaremos ainda perante um reflexo do pós-pandemia: querem liberdade, sair de casa;
– 80% dos consumidores já mudou pelo menos um hábito de consumo, adoptando um comportamento mais racional e, eventualmente, menos leal às marcas. Procuram promoções e marcas próprias, produtos substitutos que possam minimizar o impacto da inflação.
Neste contexto, importa criar uma relação mais próxima com os consumidores, com propósito, explicar de que forma cada marca é diferente das restantes, apostar na qualidade da experiência e mostrar que estão disponíveis em vários canais (físicos e digitais);
– Existe uma desconfiança no aumento dos preços. Os consumidores têm dúvidas sobre os cálculos utilizados pelas marcas para subirem os preços e 54% considera mesmo que os aumentos são também responsabilidade das empresas (não apenas da inflação, que acaba por ser usada como desculpa);
Segundo João Matias Ferreira, o Marketing tem um papel determinante relativamente às lentes com que olhamos para a realidade actual e para a estratégia futura de uma organização. Estratégia que pode ser mais moderada ou ambiciosa, mas, atenção, as marcas mais conservadoras tendem a ter um futuro mais difícil.
Conhece a história da LEGO?
A história da LEGO começou a ser escrita há quase um século, quando Ole Kirk Christiansen decidiu mudar de negócio e, confrontado com a Grande Depressão, começar a vender brinquedos de madeira. Mais tarde, chegada a II Guerra Mundial, a madeira tornou-se uma matéria-prima desafiante e Ole Kirk Christiansen volta a transformar a incerteza em oportunidade, fazendo com que a sua empresa se tornasse a primeira na Dinamarca com uma máquina de plástico injectado.
Avançamos algumas décadas e novo desafio: com o advento das consolas de jogos e do mundo digital, as vendas da LEGO caem pela primeira vez. É, então, convidado um CEO de fora da família pela primeira vez e criado um plano de reestruturação que devolveu o foco à LEGO e instituiu o sentido de comunidade. A marca deixava de ter apenas alguns designer para passar a ter milhares (todos os fãs da insígnia).
A história é contada ao público da 19.ª Conferência da Marketeer por Filipe Melo de Sampaio, que sublinha o cuidado da LEGO em não se deixar levar pela tentação de controlar apenas os custos. O caminho é o investimento, mas nas áreas certas. Fica, assim, o conselho: aproveitar anos de incerteza, como aquele que vivemos, para estudar o mercado e apresentar novos serviços e produtos.
De acordo com o partner da Deloitte, a grande pergunta é se os directores de Marketing (CMOs) de hoje terão a coragem de tomar estas atitudes mais ousadas. Um inquérito realizado pela Deloitte mostra que a resposta pende mais para o “sim”. É que, olhando para as prioridades para 2023, os principais temas prendem-se com investimento. É preciso descer o olhar até à sexta posição para encontrar as palavras “redução de custos”.
«As marcas não vão desinvestir», vinca Filipe Melo de Sampaio, adiantando que acelerar a adopção de novas tecnologias/plataformas é a prioridade mais apontada pelos CMOs ouvidos, a nível mundial, pela Deloitte, tendo em vista o crescimento das suas marcas. E isto faz-se através do investimento em metaverso/realidade virtual, Inteligência Artificial, plataformas sociais, Realidade Aumentada e moedas digitais.
A segunda prioridade é explorar novos mercados, segmentos e/ou geografias, nomeadamente através da expansão de serviços para novas áreas, melhorias do awareness do produto e da experiência do cliente e, por fim, fomento da adopção de plataformas digitais por parte dos clientes.
A fechar o top 3 de prioridades surge a implementação de algoritmos/sistemas para personalização: 38% pretende implementar durante o próximo anos e 12% nos próximos 12 a 24 meses.
Como reagir?
Filipe Melo de Sampaio desenhou ainda um mapa para as marcas que ainda não sabem muito bem como actuar perante todas estas mudanças e incertezas:
– Comunicar com transparência. É verdade que poderá ser preciso aumentar o preço, mas isso tem de acontecer de forma transparente sob pena de colocar em risco a confiança e fidelização dos consumidores. O ideal será explicar, com honestidade, os ajustes realizados;
– Aumentar e robustecer a proposta de valor. Ou seja, acompanhar o aumento dos preços com um aumento também da proposta de valor. Exemplo: uma empresa de telecomunicações subir as mensalidades mas oferecer, como compensação, o acesso a mais canais;
– Repensar o product mix. Grande parte dos consumidores está a passar para marcas próprias, em busca de alternativas mais baratas. As marcas devem, por isso, estudar os consumidores e produzir e comercializar os produtos que são mais populares, vendendo-os ao mass market com um preço acessível. Por outro lado, importa perceber se é só o low end que está a crescer, ou se também há espaço para apostar no que é premium, investindo em inovação. É o que está a acontecer com a Starbucks, que descobriu que consegue maior rentabilidade e mais clientes através de bebidas premium, porque as bebidas mais simples podem ser feitas em casa.
Se fosse necessário eleger uma lição a retirar da apresentação dos keynote speakers seria, sem dúvida, que esta não é a primeira nem será a última fase de incerteza que os mercados e as sociedades atravessam – ainda que cada uma com as suas especificidades. E Filipe Melo de Sampaio não tem dúvidas: olhando para a História, as empresas que transformam estes períodos em oportunidades são aquelas que saem deles mais fortes.
Texto de Filipa Almeida