«A contrafacção põe em risco a saúde pública»

cesar-bessa-monteiroHá uma falta de consciência dos empresários de que inovar é importante, mas proteger a inovação também. Caso não seja feito correm o risco de ver o produto – no qual tanto investimento foi feito – ser copiado.

Texto de Maria João Lima

Fotografia de Paulo Alexandrino

Quando se fala em contrafacção de marcas pensa-se de imediato em calças e t-shirts. Mas, nas palavras de César Bessa Monteiro, presidente da Associação Portuguesa dos Consultores em Propriedade Industrial (ACPI), essa era a contrafacção clássica. Hoje, mudou por completo. «E é muito mais grave a contrafacção de remédios que vêm da China, portanto fora da Europa, e que põem em risco não só a economia, mas também a saúde pública dos consumidores.»

A ACPI tem essencialmente duas funções: representar os seus profissionais e estudar e defender o direito da propriedade industrial. Mas muitas vezes contestam o poder político…

Contestamos com frequência o poder político porque devia consultar-nos, já que somos quem põe a mão na massa e não o faz com a frequência que devia. Consultam-nos dando 10 dias para nos pronunciarmos sobre matérias que às vezes são complicadas. Logo, muitas vezes fazem as leis e depois elas não têm aplicação.

Por exemplo, o anterior Governo criou a Marca na Hora, um banco de marcas em que estavam à espera que quem queria uma marca ia lá escolhê-la, comprá-la… Isto é não ter a noção do que é uma marca. Porque uma marca não é um sinal, uma palavra. É algo que tem uma alma, uma história, uma intenção. É uma realidade que está muito para além do desenho e do nome. Portanto, quando eu quero lançar uma marca, não vou buscar um nome qualquer. Eu vou criar a minha marca porque tenho uma ideia para ela, vou a uma empresa especializada em branding… a marca tem que ter uma alma para que se possa impor. A Marca na Hora foi um fracasso completo porque houve alguém que se lembrou de fazer o que já se fazia com o Empresa na Hora. Mas para as empresas funciona. Ora, para lançar uma marca no mercado gasta-se dinheiro, tem que se investir.

Quem criou a Marca na Hora não sabia o que estava a fazer. Se tivessem consultado os agentes e os outros profissionais não teriam criado esta aberração da Marca na Hora. Tudo isto para dizer que muitas vezes não somos consultados com a frequência que se justifica. Por isso é que há leis que ao serem aplicadas não têm sentido. Mas isto é apenas um alerta.

Marketeer: Desde 1975, data de criação da associação, o que mudou?

César Monteiro: Com a adesão de Portugal à CEE tivemos que transpor para Portugal todas as directivas de propriedade industrial, que eram muitas… Portugal aderiu à marca unitária, válida para os 27 países da União Europeia, e que tem sede em Alicante. Portugal harmonizou a sua legislação com a legislação  europeia. TRIPS é o nome do tratado a que Portugal aderiu, que ajuda à harmonização do comércio mundial.

Mas ainda antes do 25 de Abril Portugal sempre acompanhou tudo o que se passava lá fora em termos de propriedade industrial. A convenção da União de Paris, considerada a Bíblia nesta área e que data do século XIX, teve Portugal como um dos membros fundadores. Tal como foi também fundador dos acordos de Madrid, também no século XIX. Na área da propriedade industrial Portugal sempre foi um precursor juntamente com outros.

Marketeer: E hoje estamos ao nível do resto da Europa?

César Monteiro: Na legislação, de facto, Portugal está ao nível de qualquer país da Europa. Onde falha é na execução. Andamos para trás e para a frente. Primeiro era o Tribunal Comum que era competente nesta área. Depois passou a ser o Tribunal de Comércio.

Mas este falhou porque, além das marcas, patentes… tinha que resolver as falências, e de Código Comercial. E os processos de propriedade industrial ficaram pendentes. Entretanto, foi criado na Lei (há cerca de dois anos) o Tribunal para a Propriedade Intelectual, só para as matérias de propriedade intelectual. Este tribunal foi recriado em Junho de 2011, tendo saído uma lei sobre o seu funcionamento. Mas ainda não foi instalado. Dizem que por imposição da Troika tem que ser instalado no primeiro trimestre deste ano. Há que pensar seriamente porque temos legislação, mas falha a execução.

Marketeer: O que é preciso para funcionar?

César Monteiro: O Governo é que sabe… É um tribunal que está criado na Lei. Estava previsto e dizia-se que era para Santarém. Desde logo nós, profissionais, nos interrogámos, porquê Santarém…? Geralmente essas matérias passam-se por aqui [Lisboa], o Tribunal de Comércio é em Lisboa… Não posso duvidar da boa fé de quem nos governa. Se escolheram Santarém alguma razão há. Estou à espera há um ano e alguns meses que me dêem uma boa razão para a escolha de Santarém e até agora não tenho essa informação…

Mas que criem o tribunal para ver se andamos para a frente com estes problemas! Depois vai depender da forma como vai ser instalado, organizado… Há quem diga – e eu concordo – que não chega um. Devia ser criado um no Sul e outro no Norte. Neste momento estas questões estão a ser decididas pelo Tribunal do Comércio de Lisboa e o Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia. Admitiria que instalassem dois. Mas não basta legislar e instalar, tem que ser bem organizado.

Marketeer: Como tem sido a evolução do pedido de marcas e patentes na última década?

César Monteiro: Não tem evoluído ao ritmo que se justificaria. Em relação à inovação e aos novos produtos e processos, que têm que ser protegidos e depois lançados, tem havido uma certa evolução. Nas novas tecnologias, na bioquímica há inovação a sério. Mas nas indústrias tradicionais – como têxteis e calçado, sabemos que há meia dúzia de anos lhes traçávamos o óbito por não poderem concorrer com os baixos preços chineses, mas a verdade é que conseguiram dar a volta ao ponto de, em relação a Itália, Portugal já exportar mais do que aquilo que importa! Um facto notável.

Os nossos industriais conseguiram criar novo design, impor marcas. E hoje as nossas exportações estão a impor-se no mercado internacional. A economia portuguesa tem que passar por aqui. Isto faz-se inovando, mas também protegendo a inovação. Há aqui de facto uma falta de consciência dos nossos empresários de que inovar é importante, mas proteger a inovação também. Porque muitas vezes vêem-se confrontados – e eu tenho casos desses – com algo que exportam ser copiado, porque não protegeram devidamente.

Faço um apelo aos nossos industriais para quando estão a inovar, a criar, imediatamente proteger o objecto da sua criação. É fundamental! Na maior parte dos países tem propriedade quem regista. O uso não confere qualquer direito. Confere às vezes alguma prioridade para registar, nas marcas… Se eu não registo as marcas posso tê-las há muito tempo, mas se aparecer alguém que as registe eu não tenho direitos… claro que depois pode haver processos. Mas isso demora tempo e custa dinheiro! Se no momento em que estão a criar se mentalizarem com o “Crio, Registo”, corria tudo melhor.

Marketeer: Não o fazem porquê? É pelos valores envolvidos nos registos?

César Monteiro: Não. Nem sequer é muito caro. Comparado com aquilo que gastam em inovação não é muito. Qualquer empresa que faça investigação em medicamentos, por exemplo, gasta milhões de euros. A protecção não é assim tão cara. Em Portugal há essencialmente uma falta de consciência do que vale a propriedade industrial. Ainda é considerada como um custo. Custa cerca de 2 ou 3 mil euros para registar nos outros países. A protecção não deve ser considerada como um custo, mas como um investimento. Senão há o risco de quem não desenvolveu nada se aproveitar do esforço do empresário português, lançando produtos que este tem no mercado.

Marketeer: Mas estamos melhor?

César Monteiro: Sim, claro. Mas é preciso fazer um grande esforço. O Governo tem que consciencializar. Os portugueses não podem estar à espera, nem no aspecto da propriedade industrial, nem de seja do que for, que o Governo se substitua a eles. Mas o Governo pode ter um papel importante, quer na arquitectura legal, quer no bom funcionamento dos tribunais, quer alertando os empresários para os benefícios que a boa protecção dos seus direitos tem para eles.

Marketeer: Se o registo é feito apenas para Portugal…

César Monteiro: … tem validade só em Portugal. A marca comunitária veio criar um sistema regional. Isto é: eu já não preciso de pedir o registo em Portugal se pedir o registo em Alicante para toda a União Europeia, e naturalmente está protegido cá. Agora, se eu pedir no instituto português, ela só é válida cá. Isso serve para quem não exporte e não tencione vir a exportar. Mas acho que hoje em dia o registo comunitário se justifica. Hoje está cá apenas, mas amanhã exporta para Espanha, depois para Inglaterra, daqui a três meses para a Grécia…

Marketeer: Qual é a diferença de custo?

César Monteiro: É mais caro, mas não é assim tanto mais. Com honorários penso que o registo de uma marca comunitária andará à volta de um pouco mais de mil euros. Se for apenas para Portugal andará pelos 300/400 euros. Para quem exporta, gastar mil e tal euros na marca, acho que não tem assim muito significado… A nível mundial tem que se combinar uma série de coisas para uma marca ficar protegida. Aliás, tenho uma empresa da área da moda que se internacionalizou e tem a noção que tem que proteger os seus direitos e temo-la protegido nos mais diversos países. Num primeiro momento, é marca comunitária, depois há os acordos de Madrid, que permitem registar em mais de 100 países, ficando registado na Marca Internacional. Mas há países que ainda não fazem parte da Marca Internacional como o Brasil. Aí não tenho alternativa se não pedir lá…

Marketeer: O que deve fazer do ponto de vista legal uma empresa que quer lançar uma marca?

César Monteiro: Pode ir online pedi-la ao instituto. Mas a minha sugestão é que deve consultar um profissional – um agente ou advogado – para aconselhar mediante os objectivos que tem para a marca: se quer estar apenas em Portugal, se quer exportar e para onde… Depois de pedido o registo, a marca é publicada no Boletim da Propriedade Industrial para a eventualidade de haver interessados em reclamar o pedido. Se não há reclamação a marca é concedida em quatro ou cinco meses. Se houver reclamação segue-se um processo administrativo e a decisão do instituto a conceder ou registar a marca.

Concedida ou registada a marca, há recurso para o Tribunal do Comércio (irá ser para o Tribunal da Propriedade Intelectual), e depois para o Tribunal da Relação. Fico com a marca que não caduca (ao contrário das patentes). É renovável de 10 em 10 anos indefinidamente desde que seja usada. Não pode deixar de ser usada durante cinco anos consecutivos. De 10 em 10 anos há que pagar a renovação da marca. E aqui o profissional é importante. A marca pode ser permanentemente confrontada com marcas semelhantes. E quanto mais prestígio a marca tem, mais marcas semelhantes aparecem.

O papel do agente é estar atento a marcas parecidas que possam existir para que “a nossa marca” interceda esses pedidos. Durante a vida da marca pode haver dezenas de situações destas. O agente ou advogado quando presta este serviço não faz só o pedido, faz o aconselhamento e toda a vigilância da marca. Todos os dias em Portugal, na União Europeia ou a nível mundial são criadas marcas. Este é um trabalho diário.

Marketeer: Como têm estado os níveis de contrafacção em Portugal?

César Monteiro: Muito complicados. Sobretudo aquela que vem de fora da Europa, de países como China e Índia. Já não são tantos os têxteis, mas produtos alimentares, farmacêuticos, electrónica, software. Tudo isto já não diz respeito apenas a questões económicas, mas sobretudo de saúde pública do consumidor. O contrafactor era o fabricante de vão de escada que vendia aos feirantes… Mas a pessoa que vai à Feira do Relógio está a cometer um acto ilícito. As pessoas não têm bem noção disto. Só que hoje em dia os crimes de contrafacção de medicamentos, por exemplo, são um crime organizado. Mas as punições ainda são muito leves, à base das multas. Ainda não há esta consciência da ilicitude. A luta não é só de polícia, tribunais e advogados. É uma luta de modificação de mentalidades.

É importante que se saiba que quando se está a comprar produtos contrafeitos está a punir-se quem tem os seus direitos, além de estar a prejudicar a economia nacional e de estar a beneficiar redes internacionais que estão a lucrar muito! Os valores da contrafacção, segundo dados da OCDE, ultrapassam o PIB de mais de 150 países do mundo! São milhões de milhões de euros que todos os anos estão em causa. Impostos não são pagos, postos de trabalho são postos em causa…

Marketeer: Quais os produtos contrafeitos mais vendidos em Portugal?

César Monteiro: O vestuário talvez lidere. A certa altura desviei os meus critérios de apreciação da contrafacção da quantidade para a qualidade do que é contrafeito.

Quando pensamos que a contrafacção se verifica ao nível dos remédios, alimentar, de peças de avião… há aviões americanos com peças falsas chinesas! Se calhar em Portugal há mais jeans contrafeitos, mas o que é mais perigoso? Só há contrafacção porque há quem compre. Se não houvesse quem comprasse ela acabava.

Marketeer: O que o preocupa na contrafacção?

César Monteiro: Não são os pequenos contrafactores que neste momento me preocupam. Sabemos que nos sites da internet existe muito a venda de produtos farmacêuticos – azuis e outros. Em Inglaterra houve há uns anos uma campanha feita pelas marcas em relação a estes produtos, que chocava muito as pessoas. Diziam que quando o consumidor está a tomar um remédio contrafeito pode estar a ingerir um raticida…

Marketeer: As marcas da distribuição têm sido um problema para as marcas de fabricante?

César Monteiro: As marcas de distribuição muitas vezes aproveitam-se de rótulos e embalagens para levarem o consumidor a pensar que são outras… Neste aspecto podem ser um problema para as marcas de fabricante. As de distribuição desempenham o seu papel… são mais baratas. Mas se não houver confusão e o consumidor estiver esclarecido sobre qual é uma e a outra, o consumidor é livre e opta.

Marketeer: Mas por vezes as embalagens são muito parecidas. Qual é o limite?

César Monteiro: Para mim o limite seria as embalagens serem completamente diferentes. Seria uma concorrência mais leal. Mas desde que haja informação clara e o consumidor ao chegar ao linear saiba que uma é marca de distribuição e outra é de fabricante. Há muita gente para quem a marca não interessa nada, portanto compra a marca de distribuição.

É legítimo. Mas se uma pessoa quer uma determinada marca e depois, por a embalagem ser semelhante, o consumidor é induzido em erro, aí acho que é mais problemático.

Marketeer: Há muito esta guerra nos tribunais?

César Monteiro: Não. Que eu saiba não. Porque no fundo uma marca de distribuição não é uma marca falsificada. Aqui não estamos a falar de contrafacção. O produto é assinalado com a marca do distribuidor. Poderá haver uma certa confusão, mas se o consumidor puder livremente optar… Agora se houver alguma “batota” para levar o consumidor a pensar que é outra marca, já me parece ilegítimo.

Não sei se haverá muitos casos nos tribunais porque as marcas precisam da distribuição para vender. Procuram resolver os problemas a bem…

Marketeer: Quais os aspectos das marcas mais salvaguardados nestes processos?

César Monteiro: A marca tradicionalmente era composta por um nome e um desenho. Eu chamava às marcas nominativas figurativas. A partir daqui e com a evolução começaram a ser tidos como marcas sons, cores, combinações de cores e até (pasme-se!) odores. Houve o pedido de uma marca comunitária que era caracterizada por ser uma marca para bolas de golfe com cheiro de relva acabada de cortar…

Uma marca tem que em primeiro lugar ter produção gráfica. Depois tem que ter uma característica distintiva, porque uma marca serve para distinguir produtos ou serviços. Se a marca não tem uma característica distintiva não é marca. Ora como é que “cheiro a relva acabada de cortar” é uma característica distintiva? A marca tem que ser sempre a mesma… Este exemplo serve para mostrar que às vezes se cai no exagero.

De uma marca sonora é exemplo o Leão da Metro, que tem o elemento figurativo que é o Leão, mas tem também o som. Os genéricos dos telejornais são também marcas sonoras, porque eu sei quando ouço esses sons que vai ser transmitido o telejornal. É uma marca de serviço e tem representação gráfica porque é visual.

Isto evoluiu. Há marcas sonoras, há marcas de cores. Em Portugal admite-se que uma combinação de cores possa ser uma marca, a Visa foi disso exemplo com o azul, dourado e branco. Mas ao nível da União Europeia discute-se haver uma marca de uma só cor. Discute-se a marca da Orange ou da Avis…

Marketeer: E as marcas mutantes, de que são exemplo a Sonae e a EDP?

César Monteiro: Isso são várias marcas. A marca não pode ser mutante por natureza. A marca enquanto existe, nos termos da lei, não pode mudar. Se tenho uma marca posso mudá-la nalguns pormenores muito simples. Se a marca não é usada conforme está registada, está sujeita à caducidade.

Se tenho uma marca durante 20 anos e o público se cansa, depois já não é um problema jurídico, mas sim de branding e marketing. Crio então uma nova visão mais actualizada. Mas do ponto de vista jurídico já não é a mesma marca. Já são marcas diferentes.

Marketeer: Então tem que se proceder a todos os registos novamente?

César Monteiro: Exactamente. Tenho que pedir um novo registo. Porque se continuo com o registo antigo e uma forma diferente, a marca está sujeita a ser caduca.

Marketeer: Qual a coisa mais estranha que já lhe pediram para registar?

César Monteiro: O Tab da Levis, que estava no bolso de trás das calças. A Levis pediu o registo da posição do Tab. E a verdade é que cá em Portugal, há mais de 30 anos, foi concedido. Foi um pedido um pouco estranho. Hoje não sei se teria sido concedido.

Marketeer: Quais as prioridades da ACPI em 2012?

César Monteiro: Em primeiro lugar continuar a defender as melhores soluções para a Propriedade Industrial. Não se afiguram do ponto de vista interno grandes mudanças, a não ser a instalação do Tribunal de Propriedade Intelectual. Tem que acontecer! Gostaríamos de ser ouvidos, como outros parceiros, sobre a localização desta instalação, porque daí resulta ela ter sucesso ou não.

Do ponto de vista interno há disposições na lei de Propriedade Industrial que teriam necessidade de ser revistas. A última alteração substancial – que é de 2008 – foi feita à revelia de todos os interessados, portanto muita coisa deveria ser mudada. Do ponto de vista comunitário há uma situação importante que diz respeito ao avanço da patente comunitária, à semelhança da marca, válida para todos os países da comunidade.

Neste momento há uma patente europeia, mas não é a mesma coisa… é concedida em Munique, mas para ser válida em cada país, há que haver validação em cada um desses países.

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