Está lento, o talento?
Por José Godinho Marques, multidisciplinary creative, director criativo da Pine Roots for Brands
“Não lamente o momento” ou o “Pau de dois bicos”:
Uma das coisas mais fascinantes da “so called” indústria publicitária é a velocidade a que tudo acontece. Este vórtice que nos permite criar uma campanha de manhã e implementá-la durante a tarde, faz-nos acreditar que chegámos a um nível jamais visto de beatificação, tal a quantidade semanal de milagres que executamos – já cá faltava esta mania egocêntrica de publicitário que só-falta-caminhar-à-tona-de-água-enquanto-escreve-um-script. A verdade é que também acreditamos na obrigatoriedade de viver em time lapse, porque não há tempo para lapsos. Tal é o vício na velocidade, que criámos ferramentas de AI que nos obrigam a ser super-prompt-masters nas mais variadas formas de criar com esta ferramenta.
E quando o amor do homem é a ferramenta, então a paixão e o amor ardente pela profissão vai por água abaixo. E por falar em lapso, começo a acreditar plenamente que a inteligência artificial não será propriamente a melhor ferramenta para nos ajudar a criar um conceito vencedor. Ou uma imagem que traduza algo que nos toque, que atinja a víscera do hipotálamo e que a deixe em sangue vivo só porque sim, porque nos cruzámos com a campanha de uma marca. Ou a escrever um livro, o tal que se escreve depois de plantar uma árvore e fazer um filho, e que corre mundo em couché mate de boa gramagem e capa bonita. Sim, há quem esteja a escrever livros com AI.
Pois é, ricos filhos. Gen Z’s e afins. Todos ouvimos e lemos muito sobre a dificuldade em captar e reter talento. Mas qual talento? O que está sempre à espera de uma solução miraculosa que a AI há-de trazer de bandeja, ou o talento hipster que passados poucos meses decide que precisa de um trimestre sabático, qual rainha de Sabá, porque está cansado dos pedidos idiotas do Director Criativo, sempre minado pelos insights do Director de Estratégia?
Nunca fiz um diagnóstico para perceber se tenho algo de bipolar, mas a minha verdade é esta: gosto de rapidez. Gosto de poder escrever um script e na hora a seguir estar a fazer a direção de arte de uma outra campanha qualquer. Ou a editar um filme com as limitações de um banco de imagem, ou a discutir com um realizador os detalhes de um filme com um budget de produção semi lírico. Tenho para mim, que esta é a verdadeira essência do que fazemos nas agências. A rapidez com que depois executamos é fruto de ponderação, estratégia, horas de pensamento e muitos craft skills. Sim, é preciso rapidez na execução, e aí sim, a AI tem o seu imenso valor. Se for isso mesmo, execução.
Tendo estas manias, tenho igualmente a imensa mania de me apaixonar pelo talento das pessoas, essas pessoas bonitas que são do team IE. Da boa e jurássica Inteligência Emocional. Daquela que faz o diggin’ doloroso pelas mais encantadoras ou avassaladoras memórias, que agarra com garras e ganas os nossos galões de cultura madura, e que coloca no papel ideias fora da caixa de Pandora. Ora, como ser jurássico que sou, valorizo imenso quando me apresentam uma ideia num humilde pedaço de papel, daquelas que despedaçam corações ou arrancam sorrisos às almas mais cinzentonas. Gosto de blocos Moleskine, cheios de surpresas bem escondidas. Gosto de pessoas que arriscam vender uma ideia com meia dúzia de traços de Posca ou Faber-Castell ou Bic, como o início de qualquer coisa maravilhosa e relevante, e com o tal propósito que vem sendo moda em qualquer apresentação – mesmo que seja um sticker de Novo Preço numa embalagem de cereais.
Estou tão, tão cansado do “Epá, o texto que pedi ao ChatGPT está uma aberração, vou ter que o refazer todo”. Ou o “Epá, na imagem que o Midjourney me deu, vou ter que colocar umas mãos em Photoshop®, aquilo ficou horrível”.
Este texto vai longo e cheio de lamentações. Mas não temos direito à lamentação, em pleno 2024. Não temos. Fomos nós que pedimos o monstro, para nos libertar tempo para pensar. E que bom seria, não é? Julgávamos estar a criar um milagre da engenharia do pixel e da letra ao nível de um grilo falante da Disney, ponderadinho, para dormirmos descansados. Mas a verdade é que estamos a deixar as novas gerações a ir para a cama com um empoderado Hulk, gerando monstrinhos travessos e bizarros. E assim, com tanta Inteligência Artificial à mão, não há educação para parar, respirar e gerar uma boa ideia, via cérebro-mão. Quem sofre são as marcas. Quem sofrerá são aqueles que se deixam levar pela trend do instabonito que a AI oferece, o tal presentinho envenenado, que nos dá mais oxitocina que oxigénio.
Agora, meus queridos, é lidar. Quando se queixarem da lentidão do talento nas agências que dirigem, pensem duas vezes sobre quem terá o ónus desta estranha forma de vida em que jovens pensadores embarcaram. Espero que estes sejam devidamente recompensados para que comprem bilhete de volta. Para a Gulbenkian, por exemplo – que ajuda e desperta a IE de qualquer um que goste de criar, e que progressivamente possa deixar tanta AI só um bocadinho de lado. Mas como diria o enorme Jorge Jesus: “AI o quê, pá? Levastes com um pau?”