Na Quinta da Côrte, a arte não faz de conta
É Torto, o rio que passa no sopé da Quinta da Côrte, para se entregar, metros à frente, ao Douro. Já na quinta, o vinho, a comida, o conforto e a arte são trabalhados num patamar que faz linha recta para a excelência.
«Isso é um bom problema.» Em Portugal, é raro ouvi-lo. Na Quinta da Côrte, é quase um mantra. Ali, a ideia é que tudo seja bom ou melhor. O melhor. O melhor acolhimento, o melhor servir, o melhor vinho, a arte e o Douro. Por isso, qualquer eventual problema é uma oportunidade. Não se engarrafa em quantidade? Ganha-se em valor e posicionamento. E tudo isso se percebe bem, mal se chega ou se passa a primeira porta.
Há memórias que guardarei da Quinta da Côrte.
A forma simples, apesar da sofisticação nos elementos, acabamentos e pormenores; o sorriso à entrada; a enorme lareira que enche o jantar, e o pequeno-almoço ou o almoço; o Tinto Cão, o pastor alemão que terá a minha altura, mas alma mansa; as peças de arte e os recantos. E o sentir que se está em casa, nunca lá tendo estado antes. Não há fórmulas para isto. Acontece. E, aqui, também é assim. A culpa não é só de Philippe Austruy, o francês que se apaixonou pelo Douro – depois de se ter rendido à arte de fazer vinho, mas já lá vamos – e que desde 2012 tem vindo a recuperar a Quinta da Côrte, bem de frente e com orgulho para a colina onde se ergue a Real Companhia Velha. A culpa também é de Marta Casa-nova, a enóloga que ousou produzir ali um Viosinho que quis trazer; do Bruno Ramos, que vende os vinhos ao mundo como se fossem seus; do jovem chef Daniel Pinto, crescido em aldeia próxima, a quem deram espaço quando se percebeu que por ali há real valor. E há.
Percebe então que até pode não expressar um “uau” quando chega e, pela primeira vez, vê a casa de fora. Não se impõe, é verdade. Mas não demorará muito a sentir como esta recebe e aconchega, fazendo querer ficar ou voltar.
Philippe Austruy tinha duas quintas vitivinícolas em França, a Commanderie de Peyrassol, nas Côtes de Provence, e o Château Malescasse, no Haut-Médoc (hoje acrescenta mais uma na Toscana italiana). Quando visita a Quinta da Côrte, as casas que agora nos recebem já teriam tido melhores dias, mas percebe que é por ali que quer continuar a sua história. A compra é concluída um ano mais tarde, arrancando, depois, com as obras. Levanta paredes, trata da vinha, olha para a adega. Constrói uma nova e deixa a de sempre para os Porto. Procura equipa e contrata uma enóloga, a Marta, claro.
Vai buscar Pierre Yovanovitch, arquitecto e designer de interiores, para perceber todo o espaço e o reinterpretar com a sua visão depurada, complementando com obras de arte em que se tropeça. Desde uma Joana Vasconcelos – obra única – que provoca quem chega, ou não estivesse quase que escondida atrás de uma porta, até ao enorme candeeiro que enche a cozinha, por si desenhado. Pierre Yovanovitch não coloca objectos por colocar. A sensação com que se fica é que sempre estiverem ali, em jeito de pertença com o lugar.
Agora, o que encontra são oito quartos de hóspedes – três dos quais na Casa principal –, cujas camas recebem linho bordado e cuja decoração se enche com a faiança artesanal portuguesa, quadros, litografias de artistas e dezenas de candeeiros de autor, acesos em permanência. Mais uma biblioteca, uma piscina resgatada a um tanque, uma deliciosa cozinha que é a segunda alma do lugar. A primeira são as vinhas, em socalco até chegarem ao rio Torto, que lentamente se entrega ao Douro!
Passo a passo com tudo isto, Philippe Austruy foi então buscar a enóloga Marta Casanova para a direcção-geral da Quinta, que em 2013 fez a sua primeira colheita, com um vinho tinto colhido dos seus 26 hectares – 13 dos quais de vinha velha –, a maioria com mais de 80 anos, sendo que a parcela mais antiga (a n.º 505) tem 110 anos.
A adega antiga seria recuperada e entregue aos Porto, enquanto se erguia uma nova, um edifício de três pisos sonhado e pensado em conjunto por Marta Casanova e Pierre Yovanovitch. Adega de gravidade, recebe as uvas no piso térreo, que descem ao segundo para as cubas em inox, ou ao terceiro piso, à sala das barricas, integralmente habitada por barricas em carvalho francês (com excepção das Stockinger, para o vinho branco). A arte está presente por todo o espaço, seja em quadros, tapeçarias ou objectos de cerâmica, que o tornam único. E, sim, esquecemo-nos facilmente que estamos a entrar e a circular numa… adega.
Por ali, há provas de vinhos diárias (sob marcação) para quem quer conhecer a adega e ter uma amostra do que se faz na Quinta da Côrte. A visita e a prova-base, que inclui três vinhos, começa nos 19 euros por pessoa. Claro que se estiver alojado na Quinta, a prova já está incluída. Assim como o pequeno-almoço, que não se pode prever, com tantos sabores da região, frutas e legumes da horta ou compotas feitas em casa.
Não se sabe ao certo a data exacta em que a Quinta da Côrte, em Valença do Douro, foi fundada, mas pensa-se que existe desde o século XVIII. Os primeiros relatos de plantações de vinha na propriedade datam de 1814 e a produção de uva já foi vendida a grandes produtores de vinho do Porto, como a Delaforce, Croft, TayIor’s e a Ramos Pinto. Mas, nunca se afirmou como marca – o que está a procurar fazer agora.
Texto de M.ª João Vieira Pinto