«A transformação digital é um comboio em alta velocidade que já não pode ser parado»
Muito se tem ouvido que a pandemia de COVID-19 trouxe em apenas alguns meses o equivalente a anos de evolução tecnológica. Mas será que os resultados dessa transformação digital forçada serão para manter? Ou alguns negócios encaram este “novo normal” como algo temporário e estão prontos para regressar aos sistemas e meios antigos assim que houver essa hipótese?
Ricardo Rocha, Marketing & Communication associate director da Noesis, acredita que as mudanças decorrentes do novo paradigma em termos de hábitos de consumo vieram para ficar. «A transformação digital é um comboio em alta velocidade que já não pode ser parado», afirma em entrevista à Marketeer.
Provavelmente, acrescenta, evoluiremos para um modelo híbrido que conjugará o digital com o físico, mas com a abordagem “digital first” cada vez mais enraizada. Segundo Ricardo Rocha, o comércio electrónico continuará a crescer e há quem fale no conceito de cooperativas de serviços digitais (como acontece com as cooperativas agrícolas).
O responsável sublinha ainda que a tecnologia não é o único motor da transformação digital. É necessária um mudança cultural, no modelo de negócio e de paradigma, com o departamento de Marketing a desempenhar um papel fundamental.
Transformação digital tem sido uma expressão repetida até à exaustão, em especial nos últimos anos. No geral, em que estado estão as empresas portuguesas neste campo?
É difícil generalizar, especialmente num tecido empresarial que não é homogéneo e numa “disciplina”, a Transformação Digital, que é bastante abrangente. A transformação digital é uma buzzword e é, de facto, algo de que já se fala há alguns anos. Hoje em dia, é um movimento imparável, algo que já é incontornável, mas que assume diferentes formas e ângulos de intervenção nas empresas, sendo também um processo contínuo.
Nesse sentido, torna-se difícil apurar o ponto em que as empresas portuguesas se encontram actualmente, mas diria que há sectores em que a transformação digital está bastante avançada, em especial nas grandes empresas. Nas PMEs, a maturidade digital é menor, embora esse segmento seja positivamente impactado pelo movimento empreendedor e pelo surgimento de startups nativamente digitais.
Também no sector público, o chamado eGov, temos assistido a movimentos muito interessantes de transformação digital, ao nível dos serviços prestados ao cidadão através dos canais digitais, com algumas inovações interessantes em torno do Cartão do Cidadão, como a Chave Móvel Digital, por exemplo.
A pandemia funcionou como acelerador deste fenómeno? Em que medida?
Claramente. A pandemia foi um acelerador da transformação digital, desde logo porque acelerou a mudança de alguns hábitos de consumo, fruto do confinamento a que nos vimos forçados de um dia para o outro. O E-Commerce, por exemplo, sofreu uma aceleração brutal, os consumidores procuraram ainda mais os canais alternativos para interagir com as marcas e isso obrigou as organizações a olharem para a Customer Experience e para os seus canais digitais com outros olhos.
Por outro lado, as empresas tiveram de alterar os seus processos e a forma como se organizam. Podemos pensar em temas como o teletrabalho, que sofreu igualmente um aumento muito acentuado, que obrigou as organizações a adaptarem-se a essa nova realidade; mas também os temas da automação e da inteligência artificial, aos quais as organizações passaram a dedicar maior atenção. De igual forma, toda a temática dos dados, da analítica e a necessidade de incorporar essa intelligence na tomada de decisão (Data Driven Business) passaram a estar na ordem do dia.
A inovação forçada pela pandemia é temporária ou será para ficar?
O processo de transformação já estava em curso e foi acelerado pelo contexto, por isso, diria que veio claramente para ficar. A transformação digital é um comboio em alta velocidade que já não pode ser parado. Não sabemos como irá ser o mundo pós-pandémico, mas é praticamente certo que não será igual ao período pré-pandemia. Os consumidores são cada vez mais digitais, as organizações também.
Provavelmente, evoluiremos para um modelo híbrido que conjugará o digital com o físico, mas com a abordagem digital first cada vez mais enraizada na sociedade e nos negócios.
Quais os sectores com mais dificuldades em dar o salto digital?
Diria que os sectores primários e a Indústria de base são os que mais dificuldades têm sentido na adopção do digital. Sobretudo, na capacidade de alavancarem a sua oferta e posicionamento na procura de novos canais para escoar o seu produto ao consumidor final, fora dos habituais canais de distribuição.
O E-commerce nos próximos anos poderá ser uma tendência e há quem fale no conceito de cooperativas de serviços digitais, o que não é mais do que reeditar a filosofia das cooperativas agrícolas, por exemplo, e adaptá-las ao digital. Ainda assim, mesmo no sector primário, apesar deste desfasamento, há inúmeros processos de transformação digital em curso, nomeadamente com utilização da tecnologia, sensores, IoTs, essencialmente no processo produtivo, com o tema da analítica e big data a trazer muita inovação para este sector.
De igual forma, na Indústria, conceitos como Connected Field Service, ou a análise preditiva, com recurso a Inteligência artificial, são temas para os quais o sector olha cada vez mais e são processos de transformação digital do modelo produtivo que significarão ganhos de eficiência e de competitividade assinaláveis.
E, por outro lado, quais os sectores que se mostram mais à vontade para levar a cabo esta evolução?
Nos últimos tempos tem-se assistido a uma forte aceleração no sector financeiro, banca e seguros, impulsionados pelo surgimento das FinTech que vieram revolucionar o sector. Também o contexto de pandemia, em especial o período de confinamento, levou os bancos e as seguradoras a olhar ainda mais para o digital e a procurar desenvolver os seus canais digitais para interacção com os seus clientes.
O Turismo, por exemplo, que está a sofrer um abalo gigantesco com esta crise, poderá ser um dos sectores a dar um salto significativo nos pós-pandemia, nos próximos 2/3 anos, assim como o sector automóvel, que aos poucos vai também reinventando o seu modelo de negócio.
E como podem concorrer os negócios mais tradicionais com outros que já nasceram digitais? É uma rivalidade justa?
Diria que é o mercado a funcionar e também que é essa concorrência que promove a inovação e melhora a qualidade do serviço prestado aos clientes. O surgimento de novas empresas e novos negócios nativamente digitais, que operam ou concorrem com negócios pré-existentes força, precisamente, a inovação.
Se olharmos, uma vez mais, para o sextor financeiro, como exemplo, verificamos que o surgimento das FinTech que vieram oferecer o mesmo serviço “tradicional”, reinventando-o e digitalizando-o, promoveu uma aceleração gigantesca neste sedtor. As Fintech vieram provar que muitos processos da banca tradicional eram verdadeiramente obsoletos e não estavam ajustados às exigências do mercado e do consumidor.
Basta olhar para o processo de abertura de uma conta, por exemplo. Continuar a “obrigar” um consumidor a ter que se deslocar a uma sucursal bancária para abrir uma conta, porque tem que “assinar uns papeis” ou para fazer prova da sua identidade, é um exemplo flagrante de um desalinhamento entre o serviço prestado e a expectativa do consumidor.
E, tal como na maioria dos casos de transformação digital, o “problema” não era tecnológico. Há muitos anos que existem tecnologias de assinatura digital, sistemas de credenciação alternativos, tecnologia de leitura ou digitalização de documentos, etc. A tecnologia não é o único motor da transformação digital, como se verificou neste caso. A transformação digital ocorre por uma mudança cultural, no modelo de negócio, de paradigma e, neste caso, alavancado pelas fintech que criaram essa disrupção no mercado e aceleraram a transformação digital no sector.
Esta é uma mudança que deve partir de dentro? Ou é essencial ajuda especializada externa?
Não há uma resposta “certa” para a questão, depende do contexto, do tipo de transformação, do estado de maturidade da própria organização. Mais uma vez, reforço, a Transformação Digital não se cinge a um processo tecnológico ou à adopção de uma determinada tecnologia. A tecnologia é, sem dúvida, o “facilitador” do processo e cumpre-lhe dar resposta à necessidade identificada na organização.
Por isso, sou tendencialmente apologista que a mudança parte de dentro, com ou sem participação externa de uma consultora, por exemplo. Parte e deve partir do negócio, dos stakeholders, do Marketing até, e não do departamento de IT. A transformação digital é uma mudança de paradigma, cultural, de processos, de modelo de negócio, que culmina numa adopção tecnológica para atingir esse objectivo.
Que papel tem o departamento de Marketing nisto tudo?
O Marketing assume, mais do que nunca, uma relevância especial. É necessário olhar para o Marketing como algo mais do que o momento de comunicação, mas como um efectivo acelerador do negócio, gerador de leads e de oportunidades comerciais.
Hoje em dia, é necessário encontrar novas formas de vender no mundo digital e novas formas de relacionamento com o cliente. É necessário encontrar novos pontos de contacto com os clientes, promover novas formas de proximidade e encontrar a fórmula certa para posicionar a nossa marca, os nossos serviços ou produtos.
Conhecer cada vez melhor os clientes, as dificuldades que enfrentam, os seus interesses, o que procuram, e também acompanhar de forma próxima as evoluções no mercado. Ser capaz de se adaptar a novas realidades, todos os dias, é a missão do Marketing, onde disciplinas como o Marketing Intelligence ganham ainda maior preponderância. Cabe ao Marketing ser o motor das organizações, promover as mudanças necessárias no negócio, espoletar inovação, ser um promotor da Transformação Digital e ser parte integrante nas decisões estratégicas a tomar.
Quais devem ser os primeiros passos para uma transformação digital?
Depende muito, do sector de actividade, do mercado, do próprio negócio. No entanto, um dos “erros” mais comuns é achar-se que a transformação digital se reduz a ter uma presença digital, um website ou estar nas redes sociais. Diria que já ultrapassámos essa fase. A fase em que a simples presença digital era suficiente.
A presença digital, actualmente, é uma condição inerente a qualquer negócio. O desafio da transformação digital está muito mais relacionado com a transformação do negócio, com uma reinvenção do modelo do que com a adopção de determinada tecnologia ou canal digital. A transformação digital é um processo contínuo que pressupõe a capacidade de reinvenção e inovação constantes.
Ainda assim, se fosse possível identificar um primeiro passo a dar nessa jornada, diria que esse primeiro passo passa por identificar processos internos, de organização ou de modelo de negócio que possam “digitalizados”. No fundo, perceber onde a tecnologia pode ajudar a fazer a diferença.
Essa intervenção pode dar-se em inúmeras áreas no interior de uma empresa. Podemos pensar na interacção com os clientes, num processo de compra ou de encomenda, na implementação de um serviço de atendimento ao cliente ou de customer care, mas também num processo interno, na sua automatização, eliminando o papel e implementando fluxos 100% digitais, por exemplo.
Os exemplos são inúmeros, nos mais variados sectores. Se pensarmos nas inovações mais bem sucedidas que nos últimos anos têm revolucionado o mercado – na área da mobilidade urbana (como uma Uber, trotinetes elétricas, etc), nos meios de pagamento (com o MBWay, por exemplo), nos serviços financeiros (Revolut, entre tantos outros) – estamos a falar, na sua maioria, de modelos de negócio tradicionais, com processos “analógicos”, que foram reinventados e digitalizados. Esses foram, nada mais nada menos, do que processos de transformação digital, que se basearam na reinvenção de um modelo de negócio, e na adopção de novas formas de interacção com os clientes.
Texto de Filipa Almeida