Um mergulho… No mar
Sabor, tradição, produto, estética e sazonalidade são os valores que regem a cozinha de Gil Fernandes no Fortaleza do Guincho. A nós pareceu-nos…
Há uns anos experimentei umas primeiras criações do Gil Fernandes, ainda não estava ele à frente da cozinha do Hotel Fortaleza do Guincho, aquele reduto de bem receber, encostado ao mar de Cascais e à praia da Crismina. Mas, por essa altura, Gil já imaginava, cozinhava e dava cartas, num trabalho que misturava o que os seus sentidos lhe diziam com a aprendizagem de lugares por onde tinha passado e as influências de família.
Na altura, lembro-me de ter aplaudido algumas das suas criações, numa cozinha então liderada por Miguel Rocha Vieira. Quando Petra Bauer, a grande directora do Fortaleza do Guincho, lhe deu o palco e o elevou a protagonista principal – depois da saída de Miguel, em finais de 2018 – aplaudi de novo. Porque por aquela casa já passaram várias estrelas, mas Petra soube que Gil Fernandes tinha alma grande e saber maior. E que a estrela seguinte estava mesmo dentro de portas. Só que as portas, essas fecharam pouco depois, com a chegada da pandemia. Agora, foi tempo de voltar ao restaurante do Fortaleza e confirmar o que afinal já sabia: não merece uma estrela, mas um céu estrelado e entregarmo-nos a um dos seus menus de degustação é como deixamo-nos ir com as ondas, com vários mergulhos em profundidade e regressos à tona. Há muita emoção, imensas sensações, um mar imenso e todo um trabalho rigoroso de casamento de ingredientes e sabores.
“O passado é o presente na lembrança”, escreveu Ricardo Reis. Gil não só se inspirou na frase como a levou à sua cozinha e a trouxe à mesa, resgatando memórias gustativas, olfactivas e tradicionais. «Esse é um dos nossos valores gastronómicos: tradição, produto, sabor, estética e sazonalidade. São estes os cinco valores que nos regem», partilha já no final de um jantar onde a portugalidade foi rainha durante umas quase três horas.
O Menu de Degustação chama-se Memórias e rezou o seguinte: começámos com uns pequenos snacks, para ambientar, mas que nos foram levando a dizer “hum, hum, hum…”. Evocando o Desporto do Guincho, seguiu-se o incrível Choco Surfista. A matança trouxe à mesa um sarapatel de peixe, e a Flor Inverno um pastel de ostra com caril, gengibre e azedas, que de azedo pouco tinham. O “Foraging” materializou-se em jeito de cogumelos selvagens em cima de gambas da costa salteadas e caldo, enquanto as memórias Olfactivas se traduziram numa salada de polvo com batata doce fermentada e quinoa.
Intervalámos por uns momentos para dar as boas-vindas ao pão da casa e manteigas, “limpando” de alguma forma o palato. Seguimos viagem? É tempo do prato Favo de Areia num divino caldo de mar com crustáceos, fricassé de bomboca e amêijoa selvagem, algas e sementes de mostarda e mel. É mar, mar e mar, assim como o que se seguiria, o Algarvias feito de carabineiro do Algarve, agrião e citrinos! O momento que se segue é o único de carne – para quem a come – e tem o belo nome de Galinheiro da Avó São, que se enche no prato com caça, topinambur e inula. Depois, voltamos à praia e à água com o Domingueiras feito de corvina com moreia frita e puré de abóbora. Divinal!
As sobremesas foram buscar o belo do marmelo e outras gourmandises que já tenho vergonha de partilhar por aqui, apesar de nenhuma ter ido para trás. Em toda esta viagem feita das suas memórias, há um fio condutor muito vincado e ao qual Gil não quer fugir, que só consegue usando produtos de excelência, sendo que o Menu vai sendo ajustado, prato a prato, em função das estações. É um tempo sem conta na cozinha, com bombons que demoram dois dias a ser feitos, elementos de pratos que agarram horas até à perfeição, num trabalho de minúcia.
Gil Fernandes diz que não trabalha propriamente para a estrela mas que, no final, o desejo da sua conquista acaba por estar presente: «Sabemos que é com consistência todos os dias, mas estamos a trabalhar para a segunda!»
Por nós, já aí estaria!
Texto de M.ª João Vieira Pinto