Tecnologia trata da saúde

A indústria farmacêutica, como muitos outros sectores, está a investir fortemente no desenvolvimento tecnológico. O impacto é extensível a várias áreas do negócio, desde a investigação (agora mais eficaz) à comunicação de um novo medicamento.

Texto de Daniel Almeida

Fotos de Pedro Simões

A inovação tecnológica é um tema transversal a vários sectores de actividade, sendo, em vários casos, o verdadeiro motor de desenvolvimento desses sectores. Contudo, porventura, em nenhum outro terá tanto impacto real na vida das pessoas, como no caso do sector farmacêutico/saúde. Tecnologias como a medicina de precisão, impressão 3D, nanotecnologia, inteligência artificial ou mobile health vieram para ficar e prometem revolucionar a indústria – e a vida de todos nós.

A maior prova de que as empresas farmacêuticas estão atentas a todas estas tecnologias, e outras mais que possam vir a ter impacto no seu negócio, é a onda de aquisições e investimentos em startups tecnológicas a que temos assistido nesta área, e que tem acelerado todo este processo de desenvolvimento.

Os efeitos sentem-se logo a montante da cadeia de valor, uma vez que estas tecnologias permitem um maior acerto na investigação e desenvolvimento de novos medicamentos e terapêuticas. «O desenvolvimento tecnológico dos últimos anos tem ido um impacto brutal desde o momento da investigação, dos ensaios clínicos. Tecnologias como big data, inteligência artificial e machine learning estão a ser utilizadas numa fase muito inicial da investigação e o impacto é enorme na forma como hoje se investiga e descobre medicamentos de uma forma mais precoce», sublinham os responsáveis presentes no 10.º pequeno-almoço debate sobre o sector, organizado pela Marketeer. «Aquela lógica de tentativa e erro, de investigar vários medicamentos para lançar um, está a mudar, porque a capacidade que temos de acertar com estas tecnologias é muito maior, e a capacidade de escolher os doentes certos para os ensaios e de os monitorizar também», reiteram.

Pedro Martins (Novartis), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Sofia Freire (Angelini) e Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) são os responsáveis que se sentaram à mesa, no Hotel Palácio do Governador, para discutir o tema da disrupção tecnológica no sector.

Desafios tecnológicos

Dentro do tema da tecnologia aplicada à indústria das farmacêuticas/saúde, a área de mobile health (ou mHealth) é uma das mais promissoras. Em traços gerais, o termo designa a prática de medicina com recurso a dispositivos móveis, como sejam smartphones ou tablets. Na prática, este tipo de tecnologia pode, por exemplo, ser utilizado para realizar ensaios clínicos ou facilitar o contacto entre os doentes e os prestadores de saúde.

Contudo, nos últimos anos, têm-se multiplicado as aplicações móveis ligadas à saúde desenvolvidas por empresas estranhas à indústria – as apps de fitness, geralmente no topo dos downloads, são um bom exemplo disso – ou em parceria com empresas farmacêuticas – a Teva, por exemplo, juntou-se ao Spotify para desenvolver o Parkinsounds, um serviço de música que ajuda os doentes de Parkinson na coordenação motora. O tema levanta a questão da importância da regulamentação, por parte das entidades competentes, para comprovar a eficácia deste tipo de aplicações.

O Infarmed registou, em Agosto passado, a aplicação móvel Natural Cycles como dispositivo médico. A app, que pretende ajudar as mulheres a controlar a fertilidade, tornou-se assim a primeira app a alcançar este estatuto em Portugal. Apesar deste passo importante para o sector, os responsáveis comentam que ainda há um longo caminho a percorrer por parte das farmacêuticas no desenvolvimento de apps que sejam relevantes para o paciente.

«Estudos demonstram que a indústria farmacêutica é das mais atrasadas e resistentes a nível mundial na produção de aplicações móveis. Os downloads das apps existentes da indústria farmacêutica também são muito baixos. Praticamente toda a gente já tem uma mobile app relacionada com a sua saúde, mas a indústria farmacêutica não está a conseguir penetrar neste mercado», frisam os participantes. «Estamos a anos-luz daquilo que são as melhores práticas de utilização da tecnologia e do digital no modelo de negócio, quer com clientes, quer com doentes. Não quer dizer que não haja muitas coisas já feitas, mas há ainda um caminho longo», reforçam.

«Indústria não está distraída»

Ainda assim, ressalvam os responsáveis presentes no debate promovido pela Marketeer, «algumas das apps que aparecem não são directamente desenvolvidas pela indústria farmacêutica, mas são patrocinadas e aparecem dinamizadas pela indústria». Para além disso, lembram, o tema da tecnologia na indústria farmacêutica vai muito além da mobile health e há muito mais que está a ser desenvolvido e que tem impactado de forma profunda o sector – sobretudo ao nível da investigação -, mas que não tem visibilidade junto do público. «A indústria há muito tempo que se socorre da área informática para acrescentar valor às suas propostas. Em áreas como a oncologia existe uma série de apps e serviços para acrescentar valor aos produtos que são comercializados», afirmam.

«A indústria não está distraída. Estamos a fazer as coisas ao ritmo das nossas necessidades e não de quem nos quer vender esses serviços», garantem, recordando alguns erros de precipitação no passado. «Na altura em que se instalaram os sistemas de CRM [Customer Relationship Management] nas empresas, foi vendido como a panaceia para resolver todos os problemas da indústria. E hoje vemos que o CRM, em muitos casos, serviu para poupar uns quantos postos de trabalho, gerar de forma automática alguns mapas e análises, mas custou uma fortuna e na prática não serva para muito mais que isso», frisam.

De qualquer das formas, é expectável que, cada vez mais, a tecnologia possibilite o avanço da indústria, não só na parte da investigação ou da monitorização do doente, como na própria comunicação das empresas com os restantes stakeholders. Aliás, já é possível às empresas contactarem com os médicos, por exemplo, através de visita remota, em contrapartida com os canais de comunicação tradicionais. Mas para que esta tecnologia se possa disseminar é preciso, em primeiro lugar, identificar quais os médicos que estarão dispostos a usá-la. «E aí pode voltar a entrar o CRM», explanam.

Os custos da inovação

De acordo com os dados de Agosto da Apifarma, a dívida do Sistema Nacional de Saúde (SNS) à indústria farmacêutica ronda os mil milhões de euros. Ora, de acordo com os participantes no pequeno-almoço debate da Marketeer, a inovação tecnológica é um dos factores que tem contribuído para o aumento da dívida do SNS. A lógica é simples: havendo mais ferramentas tecnológicas, há também uma maior capacidade para desenvolver medicamentos inovadores. E a inovação, no sector farmacêutico, é cara e é comparticipada pelo Estado.

«A inovação hoje custa muito dinheiro. Mas é crucial para o aumento da qualidade e da esperança de vida do cidadão, e também para a sobrevivência num ambiente competitivo da companhia farmacêutica. Por isso, ela implica um enorme esforço financeiro para as companhias farmacêuticas. O aparecimento dos genéricos serviu, entre outras coisas, para os Estados pouparem dinheiro no curto prazo, mas no médio-longo prazo representa um aumento de custos. E porquê? Porque até ao aparecimento dos genéricos as empresas farmacêuticas financiavam-se muito nos seus “cash cows”, que eram basicamente os seus produtos antigos. A partir do momento em que, por entrada dos genéricos, deixaram de poder contar com esses “cash cows”, viram-se obrigadas a obter o retorno do seu investimento num muito menor espaço de tempo, sensivelmente o período da protecção de patente menos o tempo de registo e o tempo para acesso ao mercado. Isto implica um aumento no preço dos novos produtos, logo um aumento na despesa dos Estados ou, o que é dramático, limitações no acesso do cidadão à inovação», explicam.

Apesar de o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, ter revelado recentemente, acerca do Orçamento do Estado 2018, que o seu ministério terá mais verbas no próximo ano, os responsáveis do sector farmacêutico não estão à espera que esse dinheiro venha a ser aplicado numa redução significativa da dívida do SNS, mas sim «para pagamento aos enfermeiros, como aconteceu o ano passado, para pagar a diminuição das 40 para as 32 horas laborais». «O protocolo que está estabelecido entre a Apifarma e o Governo é válido por vários anos», lembram.

Artigo publicado na edição n.º 256 de Novembro de 2017.

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