Semestre de desafios
A centralização do mercado, o aumento da dívida dos hospitais públicos ou o condicionamento dos patrocínios a congressos e estudos científicos foram alguns dos temas que marcaram o primeiro semestre da indústria farmacêutica.
Texto de Daniel Almeida
Fotos de Pedro Simões
O primeiro semestre do ano trouxe vários desafios para a indústria farmacêutica portuguesa, em virtude de alterações regulamentares relevantes – algumas das quais apanharam o sector de surpresa – que condicionaram a actuação das empresas farmacêuticas, obrigando-as a afinar estratégias em áreas como a inovação, a gestão de portefólio ou o marketing/comunicação. Foram também seis meses marcados pela incerteza e por alguma instabilidade, fruto de constantes avanços e (sobretudo) recuos nestas decisões que impactam directamente o sector, como a Lei do Estatuto do Medicamento.
«Estes primeiros seis meses trouxeram disrupção em vários aspectos: nas compras centralizadas; na dívida [dos hospitais públicos às empresas farmacêuticas], que atingiu o maior valor de sempre; na legislação que impactou a forma como nos podemos promover junto dos profissionais de saúde; ou na legislação que nos impede de termos acesso a dados de vendas nos hospitais», resumem os convidados do 9.º pequeno-almoço debate sobre o sector, organizado pela Marketeer.
Ana Silva (Jaba Recordati), Miguel Fernandes (Pfizer), Pedro Martins (Novartis), Sofia Freire (Angelini) e Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) foram os responsáveis que se sentaram à mesa com a Marketeer, no Hotel Palácio do Governador, em Lisboa, para trocarem impressões sobre o primeiro semestre do ano, analisar as principais mudanças ocorridas e quais as consequências para o sector.
Compras centralizadas
A centralização das compras de medicamentos é um dos temas fracturantes e que promete moldar de forma permanente o futuro da indústria. Por decisão do Ministério da Saúde, os hospitais públicos estão a reforçar a compra colectiva de medicamentos, em determinados grupos terapêuticos, com o objectivo de reduzir as despesas do Estado.
O tema não é uma novidade, mas ganhou força este ano, quando o Ministério emitiu um despacho que identifica os 10 medicamentos mais caros para o Sistema Nacional de Saúde (SNS) – em áreas como a oncologia, biológicos, HIV/Sida, derivados de plasma e sangue – que os hospitais são obrigados a adquirir de forma partilhada (os restantes podem comprar directamente).
Apesar da poupança anunciada pelo Ministério, os responsáveis presentes no debate da Marketeer lembram que o novo sistema coloca maior pressão sobre os preços dos medicamentos – as empresas têm que concorrer a concurso público e ganha quem apresentar a proposta mais vantajosa.
Dados centralizados
Nem só nas compras dos hospitais se verifica uma tendência de centralização do mercado. Recentemente, o Ministério da Saúde emitiu um outro despacho que impede os hospitais públicos de cederem dados – por exemplo, de vendas.
Por norma, os hospitais vendem dados de consumo dos medicamentos a entidades externas, nomeadamente a empresas de consultoria como a IMS Health e a HMR – Health Market Research. Com esta decisão, as consultoras deixaram de ter acesso aos dados e, por conseguinte, também as empresas farmacêuticas, que a elas recorrem para terem uma radiografia do desempenho do mercado e da concorrência. «Nestes primeiros seis meses andámos um pouco às escuras no que toca a perceber a performance do mercado», referem os participantes, sublinhando que esta decisão condiciona a actuação das empresas em áreas como a inovação – se os dados não são públicos, não há como saber se o SNS está a usar mais terapêuticas inovadoras, por exemplo.
Entretanto, houve um recuo nesta decisão, com um segundo diploma a ser publicado em Diário da República, e uma das consultoras acima citadas publicou os dados do primeiro trimestre do mercado. De qualquer das formas, reiteram os responsáveis, este é «mais um factor que demonstra uma tendência de centralização» do mercado, lembrando que isto ainda não acontece… mas «admitindo que seja uma aspiração».
Aumento da dívida
A dívida dos hospitais públicos às empresas farmacêuticas agravou no primeiro semestre do ano e atingiu um novo recorde histórico. De acordo com os dados mais recentes divulgados pela Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), a dívida global dos hospitais do SNS às empresas do sector (medicamentos e diagnósticos in vitro) totalizava 924,3 milhões de euros no final de Maio, mais 1,6% (ou 14,9 milhões de euros) em relação ao mês anterior. No final de 2016, a dívida estava nos 780 milhões de euros.
Da dívida total em Maio, 661,8 milhões de euros dizem respeito a dívida vencida, o que representa uma subida de 1,9%, mais 12,3 milhões de euros, em relação a Abril. Ainda segundo a Apifarma, o prazo médio de pagamento dos hospitais às empresas farmacêuticas aumentou 35 dias face a 2016, demorando agora o Estado 11 meses para liquidar as facturas pendentes dos hospitais.
«Que outra indústria poderia sobreviver a uma dívida tão avultada?», questionam os participantes no debate.
Demora nas aprovações
De acordo com os participantes, os esforços do Ministério da Saúde em garantir uma maior poupança no sector têm prejudicado a inovação, pois «praticamente não houve aprovações de novos medicamentos neste primeiro semestre». Porquê? «Porque a inovação é cara e é comparticipada», explanam os presentes.
O processo para a aprovação de um medicamento é o seguinte: quando uma empresa farmacêutica desenvolve um novo produto, há uma primeira aprovação da Agência Europeia do Medicamento, que estuda a eficácia e segurança do produto. Segue-se um novo processo, em cada país, de aprovação de comparticipação do medicamento, que em Portugal envolve comissões de peritos. É neste último passo que tem estado o principal obstáculo. «Há medicamentos que ainda não estão aprovados em Portugal, mas estão aprovados há dois anos noutros países! Somos o último país [europeu] em termos de [prazos de] aprovação e os principais prejudicados com isto são os doentes», lamentam.
O prazo legal estabelecido, a nível europeu, para a aprovação de novos medicamentos ronda os seis meses. Em Portugal, a média está, neste momento, em 22 meses, sendo que 14% dos medicamentos estão há mais de 36 meses à espera de comparticipação.
Para os responsáveis, este é um dos factores que poderão desencorajar as multinacionais do sector a investir no País: «Temos uma grande preocupação com os custos, mas não temos um plano a médio-longo prazo. O mercado é muito pequeno e as companhias farmacêuticas podem olhar para Portugal como um mercado perfeitamente desinteressante – e algumas já pensam assim.»
Limitações aos apoios no SNS
Outro ponto que tem sido alvo de escrutínio reside na revisão à Lei do Estatuto do Medicamento. Um novo diploma publicado em Janeiro, em Diário da República, veio colocar alguns entraves aos apoios da indústria farmacêutica às entidades do Sistema Nacional de Saúde (SNS). Em traços gerais, as empresas farmacêuticas deixaram de poder patrocinar congressos, sessões clínicas e acções de formação (excepto se pedirem autorização ao Ministério) dentro dos hospitais públicos, enquanto os apoios à investigação médica passaram a ser mais escrutinados.
Face a esta nova realidade, as companhias tiveram que encontrar alternativas. Muitas delas passaram a realizar este tipo de acções de natureza científica fora das entidades do SNS (em hotéis, por exemplo), o que «acaba por ser positivo», consideram os participantes. «Em vez de fazermos sessões clínicas, em que falamos apenas dos nossos produtos, podemos providenciar um curso, por exemplo.»
Contudo, também este diploma já foi alvo de alterações, depois da Ordem dos Médicos e da Apifarma terem apelado a um recuo nesta decisão. «O Estado põe estas medidas, mas depois não consegue desempenhar o seu papel na investigação e na formação contínua dos médicos. Se não formos nós a fazer formação pós-graduada, ninguém faz, ninguém apoia!», referem os responsáveis. No entanto, ressalvam, «ainda é preciso alguma definição em termos do diploma e da forma como as coisas vão funcionar».
Em jeito de conclusão, os convidados sublinham que todas estas alterações observadas no primeiro semestre «obrigaram a um reposicionamento de muitas empresas que têm a área de OTC [over-the-counter ou medicamentos de venda livre] e consumer healthcare, que tiveram que fazer rebrandings e ressuscitar produtos que há imenso tempo não estavam a ser trabalhados, para que possam ter o foco num mercado onde não têm tantos constrangimentos legais».
Artigo publicado na edição n.º 253 de Agosto de 2017.