«O grande inimigo é o medo»
A pandemia teve o condão de acelerar o processo de digitalização da indústria farmacêutica, que estava atrasada neste aspecto. Contudo, as decisões de gestão estão a ser tomadas semana a semana, o que pode colocar em causa a sustentabilidade financeira das empresas.
Texto de Daniel Almeida
A pandemia de COVID-19 tem afectado negativamente (quase) todos os sectores de actividade em Portugal, e a indústria farmacêutica também não é imune aos efeitos financeiros da crise epidemiológica. Com excepção de algumas áreas terapêuticas específicas, como é o caso das doenças crónicas (como a hipertensão ou o colesterol elevado), o sector tem sentido «um impacto negativo, embora não seja comparável ao que acontece noutros sectores de actividade», afirmam os participantes no mais recente debate da indústria farmacêutica, organizado (à distância) pela Marketeer.
Com efeito, o primeiro trimestre do ano terminou forte para a indústria farmacêutica, uma vez que no mês de Março observou-se uma «venda excessiva de determinado tipo de produtos», à medida que os consumidores correram às farmácias para reporem o stock dos medicamentos que habitualmente têm em casa, em antecipação a um período incerto de confinamento. Contudo, nos meses seguintes esse efeito «foi-se diluindo», registando-se mesmo um decréscimo na maioria das áreas terapêuticas de prescrição.
Além disso, nem todas as empresas farmacêuticas beneficiaram deste pico de vendas no final do primeiro trimestre, uma vez que categorias como o personal care/dermocosmética não estiveram entre as prioridades dos consumidores. «Em termos de dermocosmética foi um grande choque porque não houve uma corrida às farmácias como houve no caso dos medicamentos, mas uma grande diminuição do consumo», confirmam os participantes no debate. «Foi um grande desafio enfrentar este momento. Foi preciso ter uma equipa de medical marketing capaz de responder na mesma às necessidades de treino e de informação das farmácias, ter uma equipa de vendas ágil capaz de se ajustar a esta nova vivência, e ajudar as farmácias a lidarem com o próprio medo de receber utentes», reiteram.
Mas se o primeiro semestre do ano «acabou por ser positivo, devido ao pico de Março», os responsáveis acreditam que o «segundo semestre será uma incerteza». Mais do que isso, vaticinam que os verdadeiros efeitos financeiros da crise sobre o sector só serão conhecidos a partir do próximo ano. Isto porque, tal como acontece na generalidade dos sectores de actividade, as decisões deixaram de ser tomadas a médio e longo prazo para passar a haver uma gestão «semana a semana». E isso pode colocar em causa a sustentabilidade das empresas.
«Trata-se da prevalência da saúde face à economia ou ao factor social. Estamos a ser conduzidos maioritariamente por profissionais de saúde, e é bom que assim que seja! Contudo, o impacto mais importante para os nossos negócios nem vai ser neste ano, mas no próximo e nos seguintes», alertam. «O grande inimigo é o medo. Devemos preocupar-nos com o facto de não ser possível gerir o medo nem planos de contingência futuros, quer por parte do Governo quer das empresas. Se houver uma segunda vaga ou uma mutação do vírus, como vamos gerir as nossas empresas? Estamos a trabalhar muito no imediato», reforçam.
A conversa decorreu via Zoom e contou com a participação de Cristina Simões (Noreva), Manuel Correia (Bial), Mariana Caraça (Pierre Fabre), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati) e Patrícia Pinto da Costa (Perrigo).
Digital veio para ficar
Particularmente durante o período de confinamento obrigatório, as empresas farmacêuticas tiveram de enfrentar alguns desafios comerciais. Com a retracção no consumo, as farmácias com atendimento exclusivo ao postigo durante mais de um mês e as equipas comerciais – que «dependem 99% do trabalho no terreno» – altamente limitadas, as empresas tiveram de encontrar rapidamente soluções para continuarem a desenvolver as suas operações de forma o mais “normal” possível.
Neste cenário, os players da indústria farmacêutica, na sua generalidade, reforçaram a aposta no digital, quer como canal de vendas (através de e-retailers) quer como plataforma de comunicação e promoção das suas marcas e produtos. «Houve empresas que se reinventaram em termos de comunicação e distribuição, e através das plataformas electrónicas começou-se a vender alguns produtos, o que ajudou a recuperar alguma facturação. O acelerar de alguns planos por via das necessidades de mudança ajudou-nos a compor o negócio, sobretudo nos meses difíceis de Abril e Maio», afirmam os responsáveis presentes no debate.
Também o home delivery (entregas ao domicílio), que até agora não tinha praticamente expressão no mercado português (no que diz respeito à entrega de medicamentos), acelerou e tornou-se um hábito a partir do início do estado de emergência nacional. Serviços de entregas como Glovo, Uber e até mesmo os CTT levaram e continuam a levar medicamentos a casa dos consumidores, com toda a segurança.
Apesar dos benefícios que este tipo de serviços trouxe, do ponto de vista social, este é um tema algo controverso no seio da indústria farmacêutica, por questões legais. «Pela leglislação portuguesa, a medicação tem de ser dispensada por um profissional de saúde, mesmo no caso dos medicamentos de venda livre. A distribuição ao domicílio só pode ser feita no caso de suplementação ou de outro tipo de produtos», esclarecem os profissionais do sector, adiantando que a Apifarma – Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica tem vindo a discutir soluções para que, do ponto de vista legal, este deixe de ser um problema.
Não obstante, se há algo de positivo que o sector farmacêutico pode retirar desta crise, é mesmo o desenvolvimento do processo de digitalização. «Tínhamos a noção que o online era o futuro a médio prazo, mas a COVID-19 obrigou-nos a avançar rapidamente e em força. Todas as companhias desenvolveram ferramentas específicas para o digital», asseguram, acrescentando que «Portugal estava muito atrasado nesse aspecto, mesmo em relação a outros países europeus que não são tão desenvolvidos».
Um futuro híbrido?
Tal como aconteceu na esmagadora maioria dos sectores, o digital também se tornou uma ferramenta fundamental de comunicação para as empresas farmacêuticas. Uma parte relevante da comunicação destas empresas dirige-se à comunidade de profissionais de saúde, através da presença em congressos, reuniões científicas e numa série de outros eventos que simplesmente «desapareceram» com a pandemia e as novas regras de distanciamento social.
Como consequência, as empresas farmacêuticas tiveram de reformular os seus planos de marketing de produtos. «A necessidade de comunicar com as pessoas que iam a esses eventos não desapareceu, pelo que tivemos a necessidade de arranjar ferramentas que nos permitissem chegar a essas pessoas, e o online passou a ser o meio preferencial para o fazer. Tivemos de canalizar verbas que estavam destinadas aos eventos para essa área», explicam os responsáveis.
Segundo os participantes, esta é também uma tendência que veio para ficar. O digital «vai continuar a ter um papel relevante como ferramenta de comunicação», talvez até mais do que como canal de vendas.
Neste cenário, avizinha-se um futuro híbrido, em que haverá lugar a acções de comunicação puramente digitais, outras que se vão desenrolar presencialmente e outras ainda que serão um misto das duas realidades. «O digital entrou para ficar, como em muitas outras áreas. É um dado adquirido que o nosso futuro vai ser feito de uma forma híbrida, mesmo na parte dos eventos, dos congressos e da relação com os parceiros, nomeadamente farmácias. Há sempre uma resistência natural, mas este sistema híbrido vai-se entranhando – e pode mesmo vir a ter uma preponderância do digital», antevêem.
Semestre de incertezas
Em termos de negócio, este segundo semestre levanta muitas interrogações aos profissionais da indústria farmacêutica, ou não fosse este um ano repleto de dúvidas. «Houve uma grande corrida em Março [às farmácias] em virtude de um certo pânico de fazer o loading de casa. A grande pergunta para a segunda metade do ano é: esta corrida ao paracetamol, aos anti-gripais, entre outros, foi consumo efectivo ou foi compra? Mesmo que haja uma segunda incidência [da pandemia], as pessoas vão voltar a comprar ou vão estar a usar o consumo que foi antecipado?», questionam.
Por outro lado, sublinham, «há claramente categorias que saem beneficiadas, como o caso da protecção pessoal e dos produtos imunoestimulantes, e essa é uma realidade que provavelmente vai continuar a melhorar. Há uma introdução destas categorias a pessoas que se calhar nunca as tinham usado.»
Só o tempo dará resposta a estas questões. Para já, o que é certo é que o futuro imediato continuará a passar pelo digital e que este terá que ser o meio preferencial para construir relações fortes e de confiança com todos os parceiros de negócios. «O desafio é esse, mas há muita aprendizagem a fazer. O medo vai ficar, não vai passar em dois ou três meses. Com a experiência que as equipas vão ganhando, as pessoas vão percebendo que é possível construir essas relações igualmente fortes e de confiança, tal como acontece fisicamente», explanam.
Artigo publicado na edição n.º 289 de Agosto de 2020