O efeito Kaepernick

A verdade é que o activismo compensa. Que o digam os 31% de aumento em vendas que a Nike obteve nos dias a seguir a ter lançado a campanha em que Colin Kaepernick é protagonista. O mais famoso desempregado da NFL, o homem responsável por um dos mais memoráveis protestos políticos no desporto, é também agora uma das mais famosas personalidades do mundo do activismo cívico e social através do branding. A sua luta, começada em 2016 e que se caracterizou pelo protesto contra a violência policial sobre afro-americanos e um sistema que perpetua a desigualdade de oportunidades, ficou marcada por uma forte adesão de jogadores da NFL que, como ele, se ajoelharam em protesto, jogo após jogo, perante a bandeira e o hino americano. E ficou marcada também por uma resposta de Trump e consequentemente da NFL, que conseguiu ir abafando o protesto. Na última jornada da NFL apenas um jogador se manteve ajoelhado. O resultado de tudo isto é mais uma vez paradoxal – e ameaça ficar na história não enquanto a Era Digital mas sim a Era Paradoxal. Por um lado, aos verdadeiros activistas e às organizações que todos os dias lutam pelas causas, há-de fazer confusão que sejam as marcas a ocupar o espaço ideológico. Por outro, estar contra isso é estar com Trump e seus tweets de ataque e tentativa de humilhação da Nike à NFL, ou a qualquer outra pessoa, marca ou organização que o critique. Ou contra as reacções de boicote vindas de quadrantes mais nacionalistas.

Nada disto é novo. Muito menos para a Nike (já o fizeram com o HIV, os direitos das mulheres, o racismo ou paralímpicos). E o assumir explícito de novo da eterna assinatura “Just do it” não é inocente nos tempos que correm. Ela vai aparecendo pontualmente quando o tema mais forte é a ideologia.

Será esta a nova ordem do activismo?

As marcas e as celebridades a ocupar o espaço ideológico mediático que antes pertenceu a organizações e movimentos da sociedade civil, que hoje parecem ter menos poder de fogo, numa altura em que o terreno parecia ainda mais perfeito para elas (Greenpeace? Amnistia Internacional?)?

Novos movimentos mais contextuais e, nessa perspectiva, mais focados e “brandable” (#metoo #blacklivesmatter #marchforourlives) ocupam o share of mind disponível de uma sociedade cada vez mais focada na velocidade do que na continuidade.

É esta troca – a de se conseguir alta notoriedade e poder de pressão pública para causas que enquanto cidadãos defendemos – suficiente para confiarmos nas marcas enquanto produtoras de ideologia? Talvez não. Mas não pode deixar de ser considerado positivo. Pessoalmente, prefiro que a Nike faça anúncios com o Colin Kaepernick do que o faça estritamente acerca das qualidades dos seus produtos ou dos aspectos de performance.

E, pelos vistos, a maior parte dos consumidores também. Num recente estudo (www.webershandwick.com/news/battle-of-the-wallets-the-changing-landscape-of-consumer-activism/), oito em cada 10 activistas consumidores no Reino Unido concordam que é mais importante do que nunca apoiar companhias que dizem/fazem a coisa certa. E as acções dos Buycotters começam a ter mais importância e impacto que a dos Boycotters. Significa isso que devemos manter uma posição só de concordância? Não. Temos que manter uma posição de ainda maior. vigilância. Esse é o contrato válido. Permitirmos que as marcas ocupem esse espaço ideológico, em nome próprio ou através do apoio a organizações ou personalidades, mas exigimos que elas tenham níveis de coerência e boas práticas irrepreensíveis – e a verdade é que em muitos aspectos essa estrada de duas vias vai funcionando, como é o exemplo das Sweatshops (embora não desculpando o pecado original).

Há uma razão por que os negócios e as marcas não podem tomar conta das economias das nações – embora muitas ultrapassem já o GDP de muitos países. As marcas funcionam em interesse próprio, dos seus accionistas, ecossistema, e as suas decisões são maioritariamente orientadas pelo lucro.

Mas a verdade é que as empresas e as marcas tentam influenciar a política. Muitas vezes através de lobby, através de relações públicas, de think tanks, da publicidade, da personalidade. E claro, hoje, mais do que nunca, através da ideologia.

Negar isto é ser cego, surdo e mudo face à realidade em que vivemos hoje.

A verdade é que a tendência ideológica das marcas é a de endeusar o Underdog e alinhar pelo politicamente correcto da altura e isso é sempre uma posição de interesse.

Mas acaba por ter um efeito mais positivo do que negativo, na minha opinião.

Ao contrário dos partidos políticos, que exigem dedicação ideológica total, partidarista e classista – e por isso enfrentam permanentes paradoxos ideológicos que afastam muitas pessoas –, as marcas vivem bem com a deslealdade e com a divergência de opinião e florescem na polémica, desde que esse seja um elemento claro do seu ADN. Esse, para mim, é o verdadeiro Efeito Kaepernick. Assumir que, dada a sua proximidade, as marcas podem ser instrumentalizadas, através da pressão pública, através da natural tendência para dar voz às correntes mais progressistas e que objectivamente nós, enquanto consumidores, podemos forçar esse propósito e alargá-lo para as causas que são importantes em termos sociais, comportamentais e também políticos, dado que hoje tudo o é.

Não é ingenuidade nem romantismo. É uma forma objectiva de fazer activismo. É um instrumento disponível. É um contrato possível porque, ao contrário da opinião geral, não há activismo de continuidade sem compromisso. Todos podemos ser influencers e procurar este poder. E nem precisamos de comprar um par de sapatilhas para o fazer.

Pedro Pires | CEO/CCO Solid Dogma Presidente do CCP

Artigo publicado na edição da Revista Marketeer n.º 266 de Setembro de 2018.

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