Do apego

O meu (maior) problema, estou em crer, é a minha falta de profissionalismo. Onde é que já se viu, apegar-me às marcas e ao trabalho? Não conseguir estabelecer fronteiras claras entre aquilo que gosto de fazer e aquilo que me contrataram para? Misturar sentimentos com refinamentos? E gostos pessoais com faltas de gosto institucionais?

Francamente.

Só que não.

Estou, para os distraídos, a ser irónico. E, ainda que disfarçado, falsamente modesto.

A verdade é que não só não acho que seja pouco profissional, como não tenho problema com isso. Tenho um problema, isso sim, com quem não percebe porque me apego ao que faço e, mais importante, para quem o faço.

E no entanto, apego-me. Para o bem e para o chato. Que é como quem diz, hoje queria falar-vos de apego, de pertença e da relação pessoal que temos (ou não temos, mas devíamos ter) com as marcas que trabalhamos.

Permitam-me que vos conte uma história.

Aqui há uns anos, tinha eu bastante mais cabelo e muito menos outras coisas, dei por mim a discutir com uma cliente sobre que música utilizar numa campanha em que estávamos a trabalhar. A campanha tinha ficado, com muita pena minha, uma merda; e nesse sentido, a única coisa que havia a fazer era tentar que a merda não cheirasse. Muito, pelo menos. Que foi o que fiz – ou tentei fazer – até ouvir um “Tu és criativo, só estás a pensar no teu portefólio”. Altura em que fiquei muito (mas mesmo muito) ofendido e resolvi que era tempo de ir criar para outra freguesia. Literalmente, mas isso é outra história.

Claro está, ateu-criado-numa-cultura-predominantemente-católica que sou, na altura fiquei cheio de sentimentos de culpa, a pensar se ela teria ou não razão. Mas não tinha.

É certo que há de tudo neste métier, e nesse sentido quase que consigo perceber (sublinhe-se o quase, que ainda não lhe perdoei) de onde veio a crítica. Mas se me perguntarem, desconfio sempre dos que conseguem dormir bem à noite na presença de mau trabalho por saberem que, no fim do dia, a marca não é deles e isto é “só trabalho”.

Que é (nossa). E não é (só trabalho).

Onde quero eu chegar com isto? Ao fim da página, na prática; e à forma de estar e trabalhar neste métier, na teoria.

Notem que sou o primeiro a dizer-vos que as agências têm, vezes de mais, a mania que sabem mais disto que todos; e que, ainda por cima, não estamos aqui para ser artistas, mas para falar em nome de outros. Ou outras (marcas). Mas daí a dormir bem à noite com o fazer mal feito, vai um passo de gigante. Pelo contrário, estou em crer que devemos ligar e voltar a ligar, criar e voltar a criar, e batermo-nos pela qualidade do que estamos a entregar. E não é por nós – aliás, nunca deverá ser por nós, esse é o truque – é mesmo por ela (a marca), pelas suas vendas e pela sua integridade. É aborrecido? É. Mas é assim que tem de ser. E quem não aborrece não é filho de boa gente. Ou qualquer coisa do género.

Dito isso, é óbvio que há limites. Em primeiro lugar, o da boa educação; e depois, o do bom senso. Mas não há muito mais além disso.

Tenho uma cliente (que, entre outras qualidades, tem uma paciência de santa para me aturar) que uma vez esteve três meses à espera que eu ficasse satisfeito com a paginação de um formulário de adesão. Três. Meses. Por causa de um formulário de adesão. Que mesmo assim não ficou incrível.

Se valeu a pena? Valeu, claro.

Em primeiro lugar, porque foi nesse dia (ou vá, nesse trimestre) que percebi que nada é “só trabalho”. Nem sequer um formulário. De adesão. E que era assim que teria que ser daí para a frente, por muito que (eu) custe a aturar. E depois, porque desde então a dita cliente (a santa) nunca mais me pediu um formulário de adesão, mas continua a pedir-me quase tudo o resto.

Vá lá saber-se porquê.

Por Tiago Viegas

Partner da The Hotel

tiago.viegas@thehotel.pt

Artigo publicado na edição nº271 da revista Marketeer de Fevereiro de 2019.

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