Debate: A tendência do “automédico”

Adaptação. Esta será a palavra-chave para o sector da Saúde em Portugal em 2024. O novo ano chegou com alguns problemas antigos para um sector que, apesar da reorganização em curso, continua a debater-se com uma elevada pressão, quer no sector público, quer no privado. Com a conhecida dificuldade no acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), os portugueses continuam a subscrever planos e seguros de saúde no sentido de terem um acesso mais facilitado aos cuidados nos prestadores privados, o que tem alterado significativamente os padrões de consumo.

Uma das principais alterações que advêm do crescimento do sector privado, face ao passado, é que, agora, há como que um acesso directo ao médico especialista. Se antigamente a regra era o médico de Medicina Geral e Familiar (MGF) encaminhar os pacientes para as consultas de especilidade, hoje é prática comum a marcação directa nas especialidades, através de uma app ou de outros canais digitais, por exemplo. Uma tendência que se tem vindo a acentuar pela dificuldade de acesso aos cuidados primários e pela escassez de médicos de família.

Apesar das mais-valias para os pacientes, esta é uma tendência que não deixa de colocar algumas dúvidas em relação à sustentabilidade do sistema como um todo, ou não estivessem certas especialidades no privado com tempos de espera crescentes e as taxas de sinistralidade das seguradoras igualmente a aumentar (com um peso muito grande das consultas). «Se já tínhamos um povo que se automedicava, agora temos uma população que se tornou “automédica”, ou seja, recorre aos médicos e, sobretudo, às especialidades. Já não vai ao médico de Medicina Geral e Familiar, mas vai directamente ao especialista – o que, na verdade, coloca um problema de sustentabilidade do sistema », referem os participantes no mais recente pequeno-almoço debate do sector da Saúde, organizado pela Marketeer.

Por essa razão, alertam que «devemos resistir à tentação de pôr o ónus todo» no sector público. «O SNS não está bem – o elefante está na sala –, mas temos tam- bém um consumidor que se “automedica” demasiado e isso coloca alguns problemas aos financiadores. Ninguém quer um sistema americano e, portanto, temos de pensar na sustentabilidade e equilíbrio do sistema», salientam os responsáveis.

Ana Allen Lima (CUF), Ana Reis (Stada), Ana Rita Gomes (Multicare), Maria do Carmo Silveira (Médis), Marta Cunha (Germano de Sousa), Miguel Brandão (Tranquilidade), Pedro Costa e Silva (ANF – Associação Nacional das Farmácias), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos), Vera Grilo (Medinfar) e Victor Almeida (Lusíadas) foram os participantes no debate que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.

UM TEMA CULTURAL

À volta da mesa, são vários os factores identificados como agravantes do mau momento do sector da Saúde. Desde o envelhecimento da população à pandemia de Covid-19 – que veio debilitar a saúde e diminuir a realização de diagnósticos –, passando pelas alterações climáticas, a falta de médicos e o elevado fluxo de imigração. «Estamos numa tempestade perfeita», consideram os participantes no debate.

Muitos destes temas – como o demográfico ou o das alterações climáticas – estavam identificados há décadas, sem que tenha havido capacidade para encontrar e implementar atempadamente as soluções necessárias para precaver as suas consequências para o sistema nacional de saúde. «Não conseguimos prever as soluções para problemas que vão ter efeito daqui a 10 anos, porque governa-se para o agora e para os próximos quatro anos. A panela [de pressão] está a encher e vai encher cada vez mais», alertam.

A falta de literacia na saúde, associada às dificuldades de acesso à rede de cuidados primários, também adensa os problemas do sector, uma vez que leva a uma procura elevada – e, por vezes, injustificada – pelos serviços de urgências. «As urgências, quer no público, quer no privado, estão cheias de não-urgências. E porquê? Porque as pessoas acham que é lá que vão resolver os problemas, por falta de informação e de resposta ao nível dos centros de saúde.»

Com a degradação das condições financeiras e do poder de compra, os laboratórios notam um descurar generalizado da saúde em termos de check-ups e de outro tipo de análises e exames mais direccionados para doenças muito específicas, o que também leva a diganósticos mais tardios. Os números dizem-nos que houve um atraso no tratamento de doentes por causa da Covid-19 e até ao momento «não há propriamente uma recuperação».

Da parte dos prestadores de saúde privados, o momento é de expansão, com os principais grupos a abrirem ou absorverem novas unidades, em Portugal e no estrangeiro, e 2024 será um ano de consolidação das operações. Porém, nem o crescimento da rede privada tem sido suficiente para mitigar a pressão sobre o SNS, porque a procura é tanta que «cada vez que abre uma unidade nalgum sítio, enche num instante. Parece que ficamos todos doentes de repente». «A pressão é muito grande de quem vai do sector público para o privado, mas este tem conseguido dar conta do recado e fornecer uma resposta adequada, dentro daquilo que era esperado», consideram os responsáveis, lembrando que também deste lado se sente a escassez de recursos humanos.

Para os responsáveis do sector, tudo isto espelha também um tema cultural. O facto de uma franja significativa da população portuguesa nunca ter tido médico de família – noutros países considerado o “gatekeeper” da saúde –, a juntar a uma tendência crescente pelo “imediatismo”, leva a que seja cada vez mais difícil gerir as expectativas dos pacientes. Mesmo nos serviços de telemedicina e médico ao domicílio, há um tempo de espera natural e as pessoas têm dificuldade em perceber porquê, porque têm um seguro e querem usar no imediato. «As pessoas estão pouco predispostas a saber esperar. É um tema cultural, mas também sociológico. O facilitismo de pegarmos numa app e marcarmos qualquer especialista, associado a uma má literacia, junta um conjunto de ingredientes que facilitam isto que estamos a falar. Há uma componente sociológica na forma como o doente gere a sua saúde», reiteram.

QUE SOLUÇÕES À VISTA?

Se a “panela” está a encher cada vez mais, onde está o “pipo” para aliviar a pressão sobre o SNS? Para os responsáveis presentes no debate promovido pela Marketeer, não há uma solução milagrosa e imediata, mas devemos começar, desde logo, por deixar de colocar a responsabildade toda nos ombros do sector público. E isso passa por haver um esforço concertado dos diferentes players do ecossistema (farmacêuticas, laboratórios, farmácias, seguradoras e prestadores de saúde) em transmitir as mensagens que são fundamentais a cada momento, como a prevenção ou a jornada do paciente – até porque mesmo no privado, por exemplo, são disponibilizados médicos de família, que podem fazer a tal referenciação para as especialidades, mas muitos utilizadores não estão cientes disso. Sem uma acção conjunta e concertada, estas mensagens acabam por estar dispersas e por se perder no meio do ruído.

Além disso, consideram que as farmácias podem ter um papel mais relevante no que respeita a libertar a pressão sobre os cuidados de saúde primários. Recentemente, têm sido implementadas algumas medidas nesse sentido, como a inclusão da rede de farmácias no programa de vacinação sazonal contra a gripe e a Covid-19. «Passámos de um cenário de cerca de 1000 para 3500 pontos de vacinação. Claro que ainda é preciso fazer um trabalho na sensibilização da população para a importância da vacinação – que não é obrigatória –, mas é um passo importante na acessibilidade», frisam.

E o balanço, é positivo? De acordo com o Portal do SNS, desde o início da campanha de vacinação sazonal, em Setembro de 2023, até 30 de Janeiro, foram administradas 4,3 milhões de vacinas, um número que supera, em termos absolutos, as estatísticas da campanha do ano anterior – mesmo tendo em conta que foi incluída uma nova faixa etária, dos 60 aos 64 anos, que historicamente procura pouco a vacinação. O facto de a campanha ter sido entretanto alargada (no caso da gripe) aos maiores de 50 vai fazer com que as vacinas «esgotem em pouco tempo». «Portugal está entre os países europeus na linha da frente em termos de vacinação [contra a gripe]», garantem.

Outra medida, que está ainda numa fase inicial de implementação, é a da renovação da terapêutica crónica nas farmácias, que evita a necessidade de os utentes com doenças crónicas se deslocarem ao médico para renovarem as receitas. Além disso, no início do ano arrancou a realização de testes rápidos ao VIH e hepatites virais nas farmácias, por enquanto apenas na região de Oeiras. Em breve, novas competências deverão ser entregues às farmácias, nomeadamente a dispensa de medicamentos hospitalares, entre outras medidas.

«A farmácia tem mais do que autonomia e preparação para libertar o SNS e os privados em determinados cuidados de saúde primários. Está capaz de fazer rastreios básicos, a questão da renovação do receituário crónico vai libertar imenso a recorrência ao SNS… a farmácia é o espaço de saúde de proximidade do doente», reiteram os participantes. «Trata-se de utilizar a capacidade instalada das farmácias, e as suas competências, em serviços complementares ao sistema de saúde para melhor servir a população», concordam.

Em suma, a adaptação é mesmo o tónico do sector para este ano, em vários sentidos. Em jeito de conclusão, os responsáveis apontam ainda aquelas que serão as prioridades para 2024: aposta na prevenção; investimento na literacia da saúde e na gestão da doença; investimento na protecção da saúde mental, ao nível dos seguros e planos de saúde; desenvolvimento das ferramentas à distância, como a telemedicina; e investimento em employer branding.

Este artigo foi publicado na edição de Fevereiro (n.º 331) da Marketeer.

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