Como a criatividade colectiva e as novas tecnologias podem melhorar as ideias de negócio
Por Clube de Criativos de Portugal
Até há poucos anos, as agências eram o grande centro da sabedoria e da criatividade de tudo quanto dizia respeito às marcas. Hoje, com a democratização do acesso às novas tecnologias, há um sem-número de pessoas fora desse núcleo a influenciar comportamentos. Veja-se o caso do Luva de Pedreiro: um jovem morador num sítio recôndito da Baía, coloca stories no Instagram em que, sozinho, marca livres num campo de futebol sem público, mas a narrar tudo de modo muito fervoroso; uma proeza que já conquistou mais de 18 milhões de seguidores em todo o mundo. Para Fábio Seidl, o director criativo da Meta, esta nova ordem não só altera o papel das agências como torna a criatividade mais colectiva e diversa. E quem faz agora a curadoria dos novos criativos? Este foi o ponto de partida para o segundo dia das tertúlias CCP.
Desafios
O director criativo da Meta trabalha há cerca de nove anos nos EUA e tem vindo a observar uma nova tendência no mercado criativo que se acentuou durante a pandemia: «Com a chamada great resignation, muitos profissionais deixaram de querer trabalhar nas agências e mudaram de vida. Estava a conversar com amigos meus e um deles disse: o meu director criativo saiu, foi tocar violino. Era o sonho dele e agora trabalha como freelancer e ganha mais dinheiro fazendo concertos do que quando trabalhava na agência.» Para Fábio Seidl, há outro desafio na criatividade: a atitude dos profissionais que chegam ao mercado de trabalho. «Vamos precisar de conviver com uma nova geração que não traz uma paixão pelo ofício que nós tínhamos, nem o nível de comprometimento que trouxemos. Para nós, a coisa mais importante do mundo era trabalhar em publicidade.» Com isto, um cenário de crise de talento pode estar a começar a desenhar-se: «O problema principal agora é que o talento não vai chegar.» E importa encontrar soluções para continuarem a surgir ideias brilhantes. A criação de uma rede de comunidades pode ser uma das respostas, como testemunha Seidl: «Trabalhei em agências com esse sistema: quando não havia mais ninguém para contratar, eu dizia: preciso de um developer para fazer tal coisa. Tem aquela dupla que tem uma pequena agência. Ela dá o seu talento durante três semanas e está bom. Para si vai ser bom e para eles também.»
Actualmente, os influenciadores digitais ditam as modas e ganham novos seguidores a cada dia que passa, o que obriga ao reposicionamento das agências no mercado. Para Seidl, há um caminho novo a trilhar: «Vamos precisar de uma maneira colectiva para ter as boas ideias.» Outro aspecto interessante da democratização do acesso à Internet é que as pessoas estão a conseguir afirmar a sua identidade, criando condições para o surgimento de comunidades que reclamam mais igualdade de direitos. «Há um grupo LGBTQ+ dentro da Meta que é muito activo. No grupo desta comunidade fala-se dos problemas individuais e dos negócios também. O mês de Junho é todo dedicado ao tema. Nesse mês, a Meta criou uma loja shop pride e fez uma live no Instagram onde testou uma nova tecnologia: quem assistia podia clicar em qualquer imagem da live e comprar esse produto»; os espectadores tornaram-se compradores. Nesta experiência de e-commerce participaram dois milhões de pessoas – o mesmo número das que participam em Nova York na marcha do orgulho gay -, o que permitiu um encaixe financeiro avultado às empresas participantes. O sucesso deste evento «gerou uma onda de pessoas e empresas a querer participar e colocar a sua empresa no mundo digital.» A Meta ofereceu formação para essas empresas se digitalizarem.
Oportunidades
O futuro não vai ser terrível, como aparece em muita ficção, acredita Fabio Seidl. «É muito mais simples do que imagina; você é o senhor desse futuro e vai levá-lo adiante onde você quiser, porque as ferramentas são suas; as pessoas vão criar os seus próprios universos, negócios e relacionamentos para sobreviver.» O tema do momento é o metaverso que mais não é do que «a expansão natural da Internet utilizando outras realidades.»
E o director criativo da Meta detalha: «Hoje, para aceder à Internet, usa-se as redes sociais, o telefone ou o computador e agora o que vai acontecer é que também terá um avatar e poderá conectar-se com os seus amigos para assistir a um show, um concerto; pode jogar ou trabalhar.»
Para uma melhor compreensão, sugere que pensemos como um gamer: «Há pessoas que já jogam nos seus computadores e nos seus telefones e que vivem essa vida de ter um avatar e compram roupa exclusiva e especial para o seu personagem – isso é metaverso usando realidade virtual.»
Na mesma linha, é da opinião que a próxima tendência será «a busca pela autenticidade». E justifica: «Já estamos a ver isso, porque funciona no videogame: Ah, eu tenho essa roupa única para o meu personagem. Quero ser exclusivo no mundo digital e isso vai começar a acontecer na identidade fora do mundo digital. Porque é que tenho de ir onde vai toda a gente? Será que não posso fazer descobertas? Acredito que o digital vá trazer esse sentimento, o estilo de descoberta de volta.»
Tem a palavra o público
António Câmara, chairman of Aromni e Professor na Universidade Nova de Lisboa é da opinião que qualquer agência ou empresa criativa terá de ter duas componentes: primeiro, ser revolucionária. No critério de selecção de trabalhadores «deve contratar pessoas que tenham lido revolucionários como Peter Kropotkin, um dos fundadores do anarquismo, ou Abbie Hoffman, um hippie histórico; ou seja, devem escolher pessoas que pensam contra a corrente.» Deve ainda atentar à parte tecnológica e às transformações que ela traz: «Vamos evoluir de um mundo 2D para um mundo 3D.» Para além do metaverso, já referido, há outros dois mundos que «estão a ser criados e vão explodir nos próximos dois anos: um é o da realidade aumentada, esta camada digital sobre o mundo real, que o vai interpretar, indexar e traduzir; depois, a cópia do mundo real no mundo digital: foi feita há muitos anos, hoje há o digital twinning do mundo e, no fundo, são cópias do mundo real que permitem ser manipuladas virtualmente.»
De momento, regista Câmara, «temos um ecossistema como nunca tivemos em todas estas áreas; falta-nos o espírito revolucionário, é algo que tem de voltar.» Para o professor universitário, outra componente importante para as agências criativas é a desobediência. «Acabámos de criar na Universidade Nova o Disobedience Lab / Laboratório da Desobediência, que é incrivelmente importante e vai contrastar com a lógica tradicional das empresas – não tanto as empresas da área criativa, mas de outras áreas -, que ainda são hierarquizadas, foram inundadas por pessoas que são exatamente o oposto, estão completamente deslocadas do mundo real e são um obstáculo real para o progresso de Portugal e de outros países.» Defende ser a competição algo a pôr em prática, sob pena de nos anularmos: «Há uma palavra que ninguém gosta, mas temos de colaborar para competir, porque se não competirmos somos esmagados, somos um parque temático.» E reforça: «Toda a gente compete neste mundo. Nós temos de ser realistas e a total falta de realismo que aconteceu na Europa deu nisto: a maior empresa europeia tecnológica é a 60ª no mundo. Eu não quero esmagar o outro, mas temos de sobreviver,» conclui., Essencial é ouvir as ruas
Camila Nogueira, artista digital, percebe os novos tempos que atravessam as agências criativas, aceita as mais valias da criatividade colectiva, no entanto questiona-se quanto à selecção de novos elementos para trabalhar nas agências: «Temos de ver de onde vêm essas pessoas e essas ideias, não podemos aceitar tudo. Tem de haver curadoria.» E aponta uma falha importante: «Em certas agências há poucas pessoas a ouvir as ruas, porque é aí que surge a inovação; é onde se formam as comunidades e onde os talentos aparecem.» Faz um alerta: «Talvez estejamos a educar uma geração dizendo-lhe que pode fazer tudo, mas tem de haver uma seleção em que a melhor ideia vence e o coletivo segue e apoia essa ideia.»
Aos 28 anos, a também ilustradora freelancer relata o modo como a sua geração se relaciona com o mercado de trabalho. «Dos colegas que se formaram comigo, quem já tinha uma ideia do que queria fazer, está a fazê-lo, está a ser sub-contratado dizendo não a muita coisa, recusa trabalho certo para perseguir outros projetos e está muito mais estável e melhor financeiramente do que se estivesse a trabalhar em agências; por outro lado, tenho colegas a trabalhar em agência que fazem a separação: trabalho é trabalho e chega a hora de saída, saem e não dão o extra-mile.» E antecipa um cenário para as empresas criativas: «Para as estruturas maiores vai ser muito complicado terem o talento que outrora já tiveram.» No seu caso, confessa: «Sou portuguesa, adoro competição, a Web 3.0 permite a pessoas como eu criar o seu espaço e sobreviver sem esmagar ninguém.»
Pedro Pires, director criativo da Solid Dogma, com mais de 20 anos de carreira, o nota dois traços preocupantes nas empresas criativas de hoje. Por um lado, «com toda a evolução que temos observado do ponto de vista da técnica e da capacidade de execução, existe um crescimento da mimetização.» Por outro, aponta: «A escassez de talento do ponto de vista mundial; existe muita gente mecanicamente a saber fazer um determinado tipo de coisa que começa a ser exemplificada; existe cada vez menos gente a ter capacidade de criar as pequenas revoluções, a ser rebelde dentro do sistema.» E fala do contacto com quem tenta entrar no mercado de trabalho: «A maior parte dos jovens que nos chega às agências sabem fazer aquilo que veem no Behance. E esse é o problema que estamos a enfrentar agora.»
Descrente quanto ao futuro das agências criativas tal como foi traçado pelo director da Meta, Pedro Pires acredita numa evolução diferente: «Isto é tudo muito bonito, mas o certo é que todos estes movimentos vão ser dominados mais cedo ou mais tarde por organizações com sentido extremamente utilitário. Esse utilitarismo acaba por ser autofágico e, mais cedo ou mais tarde, acaba por limitar o sentido da evolução.» Para corroborar esta ideia, dá um exemplo: «Foi o que aconteceu com a Internet: nasceu como um sonho muito bonito e acabou por se tornar altamente condicionada do ponto de vista daquilo que é o negócio.»
Sobre o modo como a tecnologia se interpõe no nosso quotidiano, o CEO da Solid Dogma não é optimista: «Progressivamente, estamos mais alienados na forma como estamos ligados: seja ao descermos uma rua e sermos identificados, seja no metaverso ou no Instagram; à partida, estamos a caminhar para sermos cada vez mais alienados do ponto de vista da realidade.» Mas o mais grave, confessa, «é toda esta evolução estar limitada pela velha história, a história da forma como o poder limita ou não as questões da diversidade.» E quando olha para uma AKQA Bloom como agência de propósito ambiental e social integrada no grupo AKQA, não deixa de comparar: «Na maior parte das empresas normais não temos esse espaço e o que me parece é que a tecnologia é cada vez mais utilizada do ponto de vista da normalização do que propriamente da permissão dessa diversidade do ponto de vista factual.»