A Marca como Construção de Significado

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Marketeer
28/12/2025
20:02
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Opinião de Gustavo Mendes, Diretor do programa Brand Management da Porto Business School e fundador da Ichika Brand Consulting

Durante décadas, grande parte da teoria económica e, por extensão, do marketing fundamentou-se na teoria da decisão racional, criando, para o efeito, a figura do Homo Economicus: um indivíduo (“consumidor”) perfeitamente racional, que age sempre de acordo com a maximização da utilidade, capaz de ponderar de forma consciente todas as alternativas e tomar decisões logicamente consistentes. Esta figura tornou-se a base para modelos de comportamento de consumo, estratégias de preço, segmentação de mercado e modelos de previsão (de escolhas), assumindo que os agentes económicos (“pessoas”) agem de forma objetiva, informada e previsível.

Apesar de ter sido dominante durante décadas, o modelo do Homo Economicus revelou-se progressivamente insuficiente para explicar o comportamento real das pessoas, especialmente no contexto do comportamento de consumo e da relação com as marcas. Isto porque, na verdade, as escolhas de compra não se restringem à lógica da maximização de utilidade. Tal como demonstram os diferentes contributos da psicologia e da economia comportamental, da sociologia do consumo, da antropologia e dos estudos culturais e da semiótica, o consumo envolve dimensões simbólicas, sociais e culturais profundas. O consumo permite às pessoas afirmar e expressar a sua identidade e valores e, com isso, integrar-se em narrativas coletivas mais amplas, funcionando como uma forma de participação social e de interpretação do mundo. Nesse sentido, cada decisão de compra é simultaneamente um ato prático e um gesto de significado, inscrito em sistemas culturais e interações simbólicas que transcendem a racionalidade pura (seja o que isso for…).

A partir dessa constatação, emergiu o conceito de Homo Significans, que desloca o foco da racionalidade para a dimensão simbólica e interpretativa do consumo. O consumidor não se limita à escolha de produtos ou serviços; ele participa nas narrativas que envolvem as marcas e os seus produtos, atribui sentido às suas práticas e constrói significado nas relações com elas, seja ao incorporá-las na sua vida e valores (“brand love”) seja ao distanciá-las criticamente (“brand hate”).

As marcas deixam de se limitar a oferecer resultados funcionais ou a cumprir tarefas utilitárias (“jobs-to-be-done”) e passam a operar como dispositivos narrativos. Estruturam universos simbólicos e oferecem papéis, valores e histórias nos quais os consumidores se podem inscrever e com as quais podem negociar identidade e reinterpretar experiências. Cada interação com a marca combina dimensões objetivas e subjetivas, práticas instrumentais e significados simbólicos, mostrando que as escolhas de consumo são simultaneamente utilitárias e interpretativas.

Neste sentido, o storytelling deixa de ser um mero recurso comunicacional: torna-se um mecanismo fundamental para a construção de sentido, articulando a experiência da marca com os sistemas culturais e as práticas simbólicas dos consumidores. Historicamente, as marcas acreditavam que o segredo estaria no controlo quase absoluto e até tirânico do seu storytelling: determinar todo o enredo, o tom, os papéis, símbolos e canais de comunicação. Hoje, esse controlo tornou-se, mais do que nunca, parcial e distribuído, pois os consumidores e as comunidades das quais fazem parte participam ativamente na interpretação e na construção do significado da marca, muitas vezes de forma espontânea e não planeada.

Esta mudança transforma o conceito e a experiência de marca: ela deixa de ser imposta unilateralmente e passa a ser um ato social, co-construído, em que o sentido emerge na interação entre as práticas institucionais da marca e as interpretações subjetivas dos públicos. O desafio da gestão de marca não é eliminar essa diversidade interpretativa, mas articular coerência e consistência narrativa (“estratégia”), garantindo que múltiplas interpretações coexistam de forma integrada e reconhecível, sem fragmentar a identidade da marca.

A tecnologia ampliou, mais do que substituiu, a capacidade narrativa das marcas. Dados, algoritmos e inteligência artificial permitem personalizar histórias e criar micro-narrativas ajustadas a contextos, públicos e momentos específicos, tornando a experiência de marca mais situada, relevante e sensível às interpretações individuais. Além disso, novos formatos – vídeos curtos, experiências imersivas, realidade aumentada e ambientes phygital – transformaram a forma, o ritmo e a densidade das narrativas, permitindo que a marca ofereça múltiplas experiências simultâneas, integradas no quotidiano dos consumidores. Não obstante, a tecnologia sem um núcleo narrativo claro (“estratégia”) não cria sentido; os meios funcionam como amplificadores, tornando visível e coerente aquilo que a marca procura comunicar e aquilo que os consumidores podem interpretar.

O impacto do storytelling não se mede apenas por notoriedade ou alcance. A eficácia de uma narrativa de marca deve ser avaliada pelo envolvimento, pela continuidade e pela capacidade de gerar significado junto dos consumidores. Indicadores como participação, diálogo, saliência e apropriação simbólica complementam as métricas tradicionais, oferecendo uma visão mais profunda sobre como a marca é vivida, interpretada e incorporada pelos públicos (que não têm de ser necessariamente consumidores).

A questão que se coloca hoje não é se as marcas devem recorrer ao storytelling, mas se estão preparadas para viver, de forma consistente, à altura das histórias que querem e ajudam a construir e que os consumidores, continuamente, interpretam e reconstroem.




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