Rotinas de sono melhoram desenvolvimento das crianças

O sono é mais do que a ausência do estado de vigília, o não estar desperto. É um processo activo do cérebro, em que este utiliza esse tempo para tarefas muito importantes. Mas quais?

Entre a variedade existente, podemos destacar a promoção de processos anabólicos, a produção hormonal, a termorregulação central, a “desintoxicação” cerebral e a consolidação da memória nos processos de aprendizagem. Para além disso, promove a auto-regulação dos comportamentos e das emoções, e é o substrato dos sonhos (fenómeno que desde sempre cativou a atenção e curiosidade da Humanidade).

Importa referir que o sono se altera ao longo do desenvolvimento do indivíduo na infância e na adolescência. Segundo dados da Fundação Americana do Sono (National Sleep Foundation), as necessidades de sono diminuem ao longo do crescimento: os recém-nascidos (0-2 meses) necessitam entre 12 e 18 horas de sono diárias; os bebés (3-11 meses) de 14 a 15 horas; as crianças (1-3 anos) de 12 a 14 horas; as crianças em idade pré-escolar (3-5 anos) de 11 a 13 horas; as crianças em idade escolar (6-10 anos) de 10 a 11 horas; e os adolescentes (10-17 anos) de 8,5 a 9,25 horas. A evidência científica demonstra que alterações na quantidade e na qualidade do sono têm impacto nas funções cognitivas, emocionais e, de forma geral, nas funções psicológicas do indivíduo, independentemente da idade.

Um dos elementos mais importantes para um sono saudável é um horário de deitar e de acordar regular. O estabelecimento desta rotina no padrão de sono optimiza o “ter sono sempre à mesma hora”, assim como ajuda a regularizar o ritmo circadiano de cada indivíduo.

Outro aspecto importante para um sono saudável envolve dar oportunidade adequada a cada criança de dormir. Com isto, pretendo esclarecer que, apesar de existir um número médio de horas necessárias para cada faixa etária durante o crescimento, cada criança tem necessidades de sono individuais e cada pai deve estar atento às pistas que sugerem que o filho não está a dormir o suficiente, nomeadamente quando a criança tem dificuldade em acordar de manhã e/ou que dorme mais ao fim-de-semana e durante as férias escolares do que durante a semana.

Parassónias e insónias

Ao passo que a maioria da população tem presente o significado de insónia, o mesmo já não é verdade para as parassónias. De uma forma simplificada, são alterações do comportamento habitual durante o sono, onde se incluem sonambulismo, terrores nocturnos, sonilóquio (falar durante o sono), bruxismo (conhecido como o ranger dos dentes) e perturbações rítmicas do movimento durante o sono. Destas destaco o sonambulismo e os terrores nocturnos.

O sonambulismo é a combinação do padrão cerebral existente no sono com movimentos deambulatórios. Enquanto a existência de um episódio durante a infância é comum, a persistência e recorrência de episódios de sonambulismo durante esta fase da vida humana é uma situação mais invulgar. Normalmente as crianças têm amnésia para o evento e, por vezes, assumem comportamentos disruptivos, como, por exemplo, urinar para um cesto, mudar mobília em casa, entre outros. Perante estes episódios, os pais devem evitar acordar a criança (visto que tal pode provocar desorientação e confusão), e reconduzi-la suavemente para a cama.

No que concerne aos terrores nocturnos, que habitualmente se manifestam com grande aparato (gritos e por vezes comportamento desorganizado, sem objectivo aparente), a grande dúvida reside na distinção entre estes e os pesadelos. Nos terrores nocturnos, a criança está a dormir, não apresenta memória do sucedido, é difícil de consolar durante o episódio (o que pode ser perturbador para os pais), pode sentar-se, andar pela casa e mesmo falar durante o evento. Por oposição, nos pesadelos, a criança consegue lembrar-se dos detalhes quando está acordada, deixa-se confortar e é capaz de comunicar com os pais. Quanto aos movimentos e vocalizações, estas são limitadas durante o pesadelo até a criança acordar.

Insónia na população pediátrica

Relativamente à insónia na população pediátrica geral, estima-se que esta perturbação afecte entre 1 e 6% das crianças e jovens. Mas se compararmos com as crianças que apresentam perturbações do neurodesenvolvimento, condições médicas crónicas ou perturbações psiquiátricas, os números são francamente maiores.

Do ponto de vista clínico, a insónia consiste na dificuldade persistente na iniciação, manutenção, duração do sono ou na qualidade deste (apesar da oportunidade e circunstâncias para dormir serem as adequadas), de onde resultam dificuldades no funcionamento da criança durante o dia. De forma a melhor se entender o conceito, encontramo-nos perante um quadro de insónia, quando existem mais de três noites “mal dormidas” por semana, nos últimos três meses.

A insónia pode ter diferentes causas e múltiplos factores na sua génese (factores biológicos, ambientais e de relacionamento social). Um dado importante a ter em atenção, apontado pelos estudos científicos, indica que 50% das crianças com insónia persistente apresentam pelo menos outro sintoma psiquiátrico. A verdade é que comummente, a insónia surge como um sintoma no contexto de uma perturbação psiquiátrica, o que nos deve alertar para a presença de outros sintomas e intervir de forma a esclarecer o quadro e tratá-los antes que os mesmos progridam.

Mas a insónia que provoca maior disfunção no seio da vida familiar na infância é a insónia comportamental. Do ponto de vista psiquiátrico individual pode ser entendida como uma forma mais simples de insónia, mas, do ponto de vista familiar e sistémico, é bastante complexa e levanta importantes desafios à família. Este tipo particular de insónia resulta de associações inapropriadas ao sono, ou dificuldade parental na colocação de limites às crianças.

Insónia e insónia comportamental

Mas o que significa isso em concreto? Passo a explicar com recurso a exemplos, que tornam mais simples o reconhecimento. No primeiro caso, encontramos as situações em que a criança precisa de televisão para adormecer, necessidade de ser embalada ou adormecer na cama dos pais para que possa efectivamente iniciar o sono. Na ausência destes elementos, por norma, a criança não consegue adormecer na hora de deitar, nem voltar a adormecer se acorda durante a noite. No segundo caso, encontramos as crianças que recusam ir para a cama ou resistem com recurso às mais diferentes técnicas para ganharem tempo (ir à casa de banho, comer, “só mais uma história”, “só mais 5 minutos”). Comummente estes dois casos traduzem-se em episódios de choro intenso, nos quais a criança fica emocionalmente muito desregulada e, por conseguinte, os pais e mães ficam também eles desregulados e muitas vezes exaustos. Convém lembrar que o final do dia é também um momento difícil para os pais, visto que, ao cansaço do longo dia, quase sempre se juntam tarefas da vida diária rotineira, como, por exemplo, o preparar do dia seguinte.

A forma de evitar este tipo de situação passa por estabelecer uma rotina antes de deitar consistente e persistente no tempo com todos os adultos que deitam a criança. A criança deve ser habituada, desde sempre, a adormecer na sua cama à noite. É importante permitir que seja capaz de se acalmar a si própria, treinando com ela pequenos períodos (sucessivamente maiores) em que os pais não intervêm. Contudo, quando as crianças não conseguem, os pais devem recorrer à sua voz para as acalmar ou, por vezes, com conforto físico (miminhos ou “festinhas”), mas sem que isso envolva aumentar o número de estímulos que se dá à criança, pois o foco é diminuir a activação desta para que possa iniciar o sono. Quando a criança acorda durante a noite devem ser reproduzidas as mesmas regras, pois, se durante os acordares nocturnos os pais estabelecerem regras mais brandas, como, por exemplo, trazer a criança para a sua cama, este comportamento irá ser um promotor para que ela acorde todas as noites procurando regras menos exigentes para a sua autonomização. Nos casos em que já existem episódios de choro intenso e desregulação marcada, a ajuda de um profissional da área da saúde mental poderá ser necessária, uma vez que estas experiências podem ser difíceis e desencadear sentimentos contraditórios nos pais. Contudo, o princípio é o mesmo, estabelecimento de limites firmes pelo adulto, podendo por vezes recorrer-se a estratégias de reforço positivo, como, por exemplo, um sistema de recompensas que premeia os comportamentos desejados na criança. Com isto pretende-se melhorar e consolidar o padrão de sono benéfico para a criança.

O sono é uma função biológica complexa que não devemos descurar. Ainda que muitas vezes seja olhado como uma perda de tempo, a verdade é que não o é. Dormir é fundamental para uma vida saudável.

A Unidade Psiquiátrica Privada de Coimbra tem por missão contribuir para o bem-estar da população através da oferta de cuidados de saúde, de actividades de formação e de investigação, na área da Psiquiatria e saúde mental, de acordo com padrões de referência internacionais. Para mais informações consulte: http://uppc.pt/

Artigo publicado na revista Kids Marketeer nº4 de Junho de 2018.

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