Da responsabilidade social

TiagoViegas

Pois. A gaita é que este texto não é o que devia ser. Estamos no Verão e, confesso, o que eu queria mesmo era estar a escrever (ainda mais) disparates por ocasião da silly season.

Até comecei e tudo: ia chamar-se “Das eminências parvas” e iria discorrer, cheio de fel e panache, sobre aquelas mentes iluminadas especialistas em dissecar as ideias dos outros em reuniões e artigos de opinião, explicando-as aos demais como se fossem crianças de 34 anos que por acaso até estão a tirar um curso superior de Filosofia à noite.

Mas não consigo. Depois de semanas inteiras com aviões a cair, guerras abjectas onde os extremismos pautam quase todas as posições (e respectivas opiniões dos portuguesíssimos treinadores de bancada) e, grosso modo, depois de um Verão de merda por esse mundo fora (incluindo por cá, onde não acontece nada de verdadeiramente horrível mas tem chovido imensas vezes, o que pode até não matar, mas é muito maçador), cheguei à conclusão que nesta silly season não ia haver texto engraçado para ninguém (até porque, só aqui entre nós, o dito texto estava a ficar uma boa merda).

Não, hoje – imbuído de um imenso ataque de humanidade que, face ao referido, tomou de assalto o copywriter que há em mim – queria falar-vos da responsabilidade social, das agências, e do quanto estas últimas deviam mas não fazem, no mais das vezes, ponta de um corno pela dita (responsabilidade social, entenda-se).

Sempre me explicaram que as agências, ao fazerem anúncios pro-bono, estavam na verdade a investir imenso dinheiro do seu bolso e que, o mínimo que as associações e demais instituições de solidariedade social podiam fazer era deixar-nos trabalhar à vontade, porque o nosso lado do acordo era podermos ganhar uns prémios com os trabalhos absolutamente geniais que criávamos para eles. Saliento, aliás, que não foram um nem dois, mas muitos (um eufemismo para praticamente todos) os meus chefes que me ensinaram assim a cartilha. E eu, que no mais das vezes penso substancialmente menos do que devia, assim aprendi.

Certo dia, já eu era (um pouco) mais crescido e director criativo, dei por mim em acesa conversa telefónica com uma cliente para a qual estava a produzir um filme pro-bono. A cliente insistia num pack-shot assim, e eu queria-o assado. Até que ela me explicou que queria assim para garantir leitura, e eu puxei da cartilha, expliquei-lhe que queria assado por causa dos prémios, e que se assim era então não valia a pena prolongarmos a relação, porque nós (agência) não estávamos a ganhar nada com aquilo.

E depois desliguei o telefone, meditei durante meio segundo sobre o que tinha acabado de dizer e no que me andaram a ensinar durante anos e pensei: que grande besta que tu me saíste. (A sério, literalmente assim, com uma asneira feia e tudo.) Mas por que raio é que o meu lado do acordo são os prémios? Por que carga de água é que o meu lado do acordo não é só uma consciência tranquila? E desde quando é que a responsabilidade social tem que ser recompensada?

E depois continuei durante uns tempos a perguntar(-me) mais umas coisas.

A mais importante das quais, refira-se, a mais básica de todas: será que a única forma de as agências serem socialmente responsáveis é mesmo a fazer anúncios? (e não me digam que é nisso que elas são boas e acrescentam valor, porque se há coisa que a maioria das agências não sabe fazer decentemente são anúncios).

Será que às vezes não valia mais a pena agarrar nos meninos e meninas e senhoras e senhores da agência e pedir-lhes para arregaçarem as mangas e mandá-los a todos ir fazer qualquer coisa de útil? Será que não está tudo mais ou menos errado na forma como a maior parte das agências lida com a responsabilidade social (que é a cravar borlas às produtoras, que ainda por cima não têm culpa nenhuma disto)? E por aí em diante.

Quando comecei a pensar em abrir uma agência, disse a mim mesmo que comigo seria diferente. Que a responsabilidade social seria a sério. Que quando o fizéssemos, seria por sermos responsáveis e não para promover a agência (já agora, só para avisar que sei o que fizeste no Natal passado).

E depois esqueci-me. Até que caiu um avião, manipularam e mataram uma data de crianças e sei lá mais o quê. Então lembrei-me, escrevi um texto e agora vou, se não se importam, tratar do assunto.

Coisa que, sejamos honestos, vocês também podiam e, muito provavelmente, deviam fazer.

Texto Tiago Viegas

Fotografia  Paulo Alexandrino

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