“Comunicar saúde é cuidar; cada palavra certa dita a tempo pode salvar vidas”, Bernardo Soares, UPPartner

NotíciasEntrevista
Sandra M. Pinto
27/10/2025
11:00
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27/10/2025
11:00


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Numa altura em que a saúde se afirma cada vez mais como um conceito global, que ultrapassa fronteiras entre espécies, disciplinas e ecossistemas, comunicar bem tornou-se tão essencial quanto tratar. É neste ponto de encontro entre ciência, empatia e impacto social que nasce o percurso do médico veterinário que trocou a prática clínica pela comunicação em saúde. Com uma visão assente no conceito One Health, que integra pessoas, animais e ambiente, Bernardo Soares, DVM & One Health Diretor na UPPartner , acredita que “falar de saúde é falar de tudo o que vive”.

Por Sandra M. Pinto

Hoje, o seu trabalho na UPPartner reflete precisamente essa missão: transformar conhecimento técnico em compreensão real, aproximando a ciência das pessoas e promovendo uma cultura de prevenção e bem-estar coletivo. Nesta conversa, Bernardo Soares partilha o caminho que o levou a sair da clínica para os media, a importância da comunicação como ferramenta de saúde pública e a urgência de pensarmos o futuro com uma visão verdadeiramente integrada, onde cuidar de um é, inevitavelmente, cuidar de todos.

O que o levou a trocar a prática clínica pela comunicação em saúde?
Foi uma transição inesperada, mas natural. Percebi que poderia ter um impacto mais amplo ao comunicar do que apenas ao tratar. Na prática clínica, o alcance da mensagem é individual; na comunicação, é coletivo. A decisão de abraçar esta mudança surgiu da vontade de amplificar a importância de uma saúde verdadeiramente global, onde pessoas, animais e ambiente estão profundamente interligados. Trabalhar na UPPartner, com a sua experiência e capacidade de chegar a diferentes públicos através dos media, tornou-se a forma certa de o fazer.

Houve algum momento ou caso concreto que o fez perceber que o desafio maior já não era tratar, mas comunicar para prevenir?
Tratar será sempre uma missão central em saúde, mas percebi que o verdadeiro desafio está na prevenção – e que esta só é eficaz quando assente numa comunicação clara, acessível e contínua. A consciencialização e a informação são os pilares da prevenção, mas ainda existem lacunas na forma como chegam às pessoas. Tanto os profissionais de saúde humana como os profissionais veterinários reconhecem, desde a formação, o papel fundamental da prevenção. No entanto, a prática diária continua muito centrada na resolução do problema imediato. É aqui que a comunicação se torna essencial: ela pode preencher o espaço entre o conhecimento técnico e o comportamento preventivo, aproximando a ciência das pessoas. É também por isso que acredito que as agências e os comunicadores especializados têm um papel decisivo em apoiar os profissionais nesta missão de educar e prevenir.

Como é que a experiência como médico veterinário moldou a forma como hoje pensa a comunicação e a saúde pública?
Enquanto médico veterinário, sempre tive consciência do papel essencial — e muitas vezes invisível — que desempenhamos na saúde pública. Sem veterinários, a saúde coletiva estaria em risco: somos responsáveis pelo controlo das doenças zoonóticas, pela segurança alimentar e pela monitorização de riscos que afetam pessoas, animais e ambiente. Essa experiência deu-me uma perspetiva única sobre a interdependência entre todas as formas de vida. Percebi que a saúde pública não pode ser pensada de forma isolada, mas sim como um esforço conjunto entre diferentes setores e disciplinas. Hoje, levo essa visão para a comunicação — acreditando que só com colaboração e linguagem partilhada conseguimos construir uma verdadeira cultura de prevenção e bem-estar global.

Que aprendizagens da clínica leva para o trabalho como comunicador de ciência?
Da prática clínica levo sobretudo a importância de saber explicar com clareza — de tornar a informação compreensível sem a simplificar em excesso. Aprendi que cada pessoa, tal como cada tutor de um animal, precisa de perceber o que está a acontecer para confiar nas decisões e agir de forma informada. Como comunicador de ciência, procuro aplicar essa mesma lógica: traduzir o complexo sem distorcer, dar contexto e significado ao que é técnico. No fundo, comunicar ciência é uma extensão natural do que sempre fiz — criar entendimento para gerar confiança.

O que significa, na prática, o conceito One Health?
One Health significa harmonia e equilíbrio — entre pessoas, animais e ambiente. É reconhecer que a saúde não é um conceito isolado, mas um ecossistema interligado, onde cada ação tem impacto sobre o todo. Na prática, é voltar a uma visão mais ancestral e consciente, em que o respeito por tudo o que nos rodeia é parte integrante do nosso próprio bem-estar. Falar de One Health é, portanto, falar de corresponsabilidade: na forma como produzimos, consumimos, comunicamos e cuidamos. É este olhar sistémico que procuro levar para a comunicação — mostrar que a saúde de um depende sempre da saúde de todos.

Porque é que acredita que só conseguimos falar verdadeiramente de saúde quando integramos pessoas, animais e ambiente?
Porque são realidades indissociáveis e interdependentes. A saúde humana não existe isolada, depende da saúde dos animais e do equilíbrio do ambiente onde todos coexistimos.
Um exemplo simples ilustra bem esta ligação: não recolher os dejetos de um cão pode parecer um gesto menor, mas tem impacto direto na saúde pública. Basta alguém pisar esses dejetos e transportá-los nos sapatos até casa para gerar contaminação e exposição a doenças. Ao mesmo tempo, esses resíduos podem infiltrar-se no solo ou atingir cursos de água, comprometendo a saúde de outros animais e do ecossistema.
Falar de One Health é compreender precisamente isto, que cada ato individual tem uma consequência coletiva, e que cuidar de um é, inevitavelmente, cuidar de todos.

Que exemplos concretos mostram como estas três dimensões estão interligadas?
Além do exemplo anterior, que se aplica aos animais de companhia, há situações ainda mais evidentes no contexto dos animais silvestres. Aqui, o ser humano assume um papel duplo: é a principal causa do desequilíbrio, mas também a peça-chave para o restaurar.
A desflorestação na Amazónia é talvez o exemplo mais claro. Ao destruir milhares de hectares de um ecossistema equilibrado, estamos não só a reduzir os principais produtores de oxigénio e fixadores de dióxido de carbono — agravando o aquecimento global —, como também a forçar espécies selvagens a aproximarem-se das zonas habitadas. Esse contacto aumenta a probabilidade de transmissão de doenças entre animais selvagens, domésticos e humanos. Tudo isto demonstra que as fronteiras entre saúde humana, animal e ambiental são puramente artificiais. Quando uma se desequilibra, todas são afetadas.

Como é que Portugal está a posicionar-se neste debate global sobre One Health?
Apesar da nossa dimensão, Portugal tem mostrado um espírito pioneiro e uma crescente consciência sobre a importância do conceito One Health. É um tema que começa a ganhar espaço não apenas na comunicação institucional e governamental, mas também no ensino e na investigação, o que é particularmente encorajador. Vejo cada vez mais instituições académicas a integrar esta abordagem nos seus currículos, e algumas — ainda poucas, mas muito relevantes — a adotar o One Health como base estruturante de todo o processo de ensino. É esse o caminho em que mais me revejo: formar profissionais com uma visão global e interdisciplinar da saúde, capazes de compreender e agir sobre a interligação entre pessoas, animais e ambiente.

Costuma dizer que “falar de saúde é falar de tudo o que vive”. De que forma a comunicação pode mesmo salvar vidas?
Digo muitas vezes que a comunicação é o primeiro ato de prevenção. Uma mensagem ausente, incorreta ou fora de tempo pode, de facto, fazer a diferença entre a vida e a morte — de uma pessoa, de um animal ou até de um ecossistema. Quando comunicamos bem, educamos, prevenimos e criamos confiança. A comunicação tem o poder de transformar conhecimento científico em ação concreta, de aproximar a ciência das pessoas e de gerar comportamentos mais responsáveis e conscientes. Por isso, acredito genuinamente que comunicar saúde é cuidar — e que toda a palavra certa dita a tempo pode salvar vidas.

Porque é que considera que o veterinário tem um papel central na literacia em saúde?
O médico veterinário é, por definição, o guardião da saúde animal, mas o seu papel vai muito além disso. A saúde animal está intimamente ligada à saúde humana e ambiental, e é nessa intersecção que a profissão ganha um peso determinante na literacia em saúde. O veterinário atua na prevenção de zoonoses, na segurança alimentar, na sustentabilidade e na educação dos tutores, áreas que têm impacto direto na vida das pessoas. Por isso, acredito que os veterinários são uma ponte essencial entre ciência e sociedade, capazes de traduzir conhecimento técnico em mensagens claras e compreensíveis, ajudando a construir uma cultura de prevenção e de bem-estar coletivo.

Que barreiras ainda existem entre a ciência e a sociedade?
A ciência é o que nos permite entender o mundo, antecipar riscos e cuidar melhor da saúde de todos. É, em muitos aspetos, o nosso maior instrumento de esperança. No entanto, ainda existe uma distância significativa entre o conhecimento científico e a sociedade, muitas vezes criada por linguagem demasiado técnica, falta de tempo dos especialistas para comunicar e, em alguns casos, pela desinformação que ocupa esse espaço. Acredito que o grande desafio é fazer da ciência um território partilhado — acessível, inclusivo e compreensível para todos. E isso só é possível através de uma comunicação clara, empática e rigorosa. No fundo, a ciência precisa de voz, e comunicar é a forma mais eficaz de transformar conhecimento em confiança e impacto social.

Que estratégias utiliza para tornar a informação científica acessível sem perder rigor?
Procuro agir tendo em conta dois desafios recorrentes na comunicação científica entre profissionais e pacientes — ou tutores, no caso veterinário. O primeiro surge quando a explicação é demasiado técnica e o jargão se torna inacessível. O segundo acontece quando, por receio de não ser compreendido, o profissional simplifica em excesso ou evita explicar, deixando um vazio que prejudica a confiança. A solução está no equilíbrio: traduzir sem distorcer, simplificar sem infantilizar. Cabe-nos, enquanto profissionais de saúde e de comunicação, transformar o conhecimento técnico em compreensão real, garantindo que a informação é clara, rigorosa e útil para quem a recebe. Neste sentido, procuro sempre adaptar a linguagem ao interlocutor. Antes de comunicar, é essencial perceber o seu nível de conhecimento e o que realmente precisa de compreender. A partir daí, recorro a exemplos práticos, analogias simples e uma estrutura lógica — começo pelo essencial e só depois aprofundo o detalhe técnico.
Outra estratégia é verificar constantemente se a mensagem foi entendida, fazendo perguntas e ajustando o discurso quando necessário. O rigor mantém-se, mas é traduzido numa linguagem humana, que cria ligação e confiança. No fundo, comunicar ciência é como ensinar: exige precisão, empatia e a capacidade de tornar o complexo acessível sem o desvirtuar.

Como se combate a desinformação em saúde, sobretudo em tempos de crise?
Combater a desinformação em saúde — sobretudo em tempos de crise — exige uma ação coordenada entre profissionais, entidades oficiais e a sociedade. É essencial comunicar com calma, clareza e rigor, evitando discursos alarmistas, mas sem deixar margem para dúvidas sobre o que está a acontecer ou como agir. A comunicação deve ser simultaneamente assertiva e empática, capaz de transmitir confiança num contexto de incerteza. Na prática, acredito que há quatro pilares fundamentais: divulgar informação correta e baseada em evidência científica, verificar sempre a credibilidade das fontes, investir numa comunicação de risco clara e adaptada aos diferentes públicos e aproximar-se das comunidades, ouvindo as suas dúvidas e oferecendo respostas contextualizadas. Em suma, a melhor forma de combater a desinformação é ocupar o espaço que ela procura preencher — com conhecimento, transparência e humanidade.

Que papel podem os media e as redes sociais desempenhar numa comunicação mais responsável?
Os media e as redes sociais têm um papel determinante na forma como a sociedade compreende e reage à informação em saúde. São os principais canais através dos quais as pessoas se informam e, por isso, devem assumir uma responsabilidade acrescida na forma como comunicam. No caso dos media, o rigor e a verificação das fontes são essenciais para garantir credibilidade e evitar a propagação de desinformação. Já nas redes sociais, é necessário um maior esforço de supervisão, validação e literacia digital, promovendo conteúdos fidedignos e removendo informação comprovadamente falsa. Mais do que controlar, trata-se de educar e capacitar, transformar estes canais em aliados de uma comunicação responsável, transparente e baseada em evidência.

De que forma o olhar clínico, habituado à escuta e ao cuidado, ajuda a comunicar com mais empatia e clareza?
O olhar clínico ensina-nos que escutar é tão importante como agir. A capacidade de observar, ouvir e compreender o outro é o que permite chegar a diagnósticos mais precisos, mas também a relações mais humanas. A empatia é, por isso, parte inseparável da comunicação em saúde. Uma mensagem clara e eficaz nasce da disponibilidade genuína para perceber quem está do outro lado, o que sente e o que teme. Comunicar com empatia não é apenas transmitir informação; é criar entendimento e confiança, elementos tão essenciais à saúde como qualquer tratamento.

Que erros mais comuns observa na forma como comunicamos temas de saúde?
Vejo dois grandes tipos de erros na comunicação em saúde. O primeiro surge entre os próprios profissionais do setor, quando a informação é transmitida com excesso de complexidade, sem atenção ao nível de compreensão de quem a recebe. A isto junta-se, por vezes, a falta de escuta ativa e a tendência para minimizar emoções ou receios, o que fragiliza a relação de confiança.
O segundo tipo ocorre num contexto mais generalista: o sensacionalismo. A forma como certos temas são tratados nos media pode gerar medo ou confusão, quando o objetivo deveria ser esclarecer e educar. Em ambos os casos, o desafio é o mesmo, comunicar com rigor, empatia e sentido de responsabilidade, sem perder de vista o impacto real que as palavras têm na vida das pessoas.

Como equilibrar a emoção e o rigor técnico na comunicação científica?
Equilibrar emoção e rigor técnico é o grande desafio da comunicação científica. E aqui entra o storytelling, não apenas como ferramenta de marketing, mas como parte da nossa natureza humana. Desde sempre, contamos histórias para compreender o mundo, transmitir conhecimento e criar pertença. A ciência não deve ser exceção. Quando as mensagens científicas são contextualizadas e transformadas em narrativas validadas e fundamentadas, tornam-se mais próximas, compreensíveis e memoráveis. O rigor mantém-se, mas ganha emoção e propósito. No fundo, contar uma boa história com base científica é uma das formas mais eficazes de comunicar saúde.

Que conselhos daria a profissionais de saúde que querem comunicar melhor com o público?
O primeiro passo é reconhecer o mérito de quem já percebeu que comunicar bem é parte da prática clínica. Esse reconhecimento é, por si só, sinal de evolução. Depois, é fundamental colocar-se no lugar do outro — perceber como a informação é recebida e o que pode ser feito para torná-la mais simples, útil e humana. A empatia é, muitas vezes, o que transforma uma explicação técnica numa mensagem verdadeiramente compreendida. Por fim, encorajo todos os profissionais de saúde a investirem em formação em comunicação. Saber ouvir e saber explicar são competências clínicas tão importantes quanto o conhecimento técnico. É essa combinação que permite construir confiança e promover prevenção.

Que futuro imagina para o conceito One Health na prática profissional e na comunicação?
Vejo o futuro do One Health assente numa cooperação cada vez maior entre setores profissionais, onde o conhecimento é partilhado e cada área contribui para o progresso das outras. Menos barreiras, menos preconceitos e mais sinergias, porque o que realmente importa é o impacto que podemos gerar em conjunto. Acredito também numa comunicação em saúde mais integrada e menos individualista, capaz de valorizar todas as áreas que contribuem para o bem-estar coletivo. A Medicina Veterinária é um exemplo claro: desempenha um papel essencial na saúde pública, mas ainda não recebe o reconhecimento proporcional à sua importância.
O futuro passa por trabalhar e comunicar como um só sistema, onde a saúde humana, animal e ambiental coexistem em equilíbrio — e onde comunicar bem é parte fundamental de cuidar.

Que projetos ou sonhos ainda gostaria de concretizar nesta intersecção entre ciência, saúde e comunicação? 
Gostava de contribuir para reconectar uma sociedade que, muitas vezes, se afastou de si própria e do mundo que a sustenta. Acredito que a ciência, a saúde e a comunicação podem, e devem, funcionar como pontes entre pessoas, conhecimento e ação. O meu objetivo é criar projetos que promovam sinergias reais entre setores, capazes de gerar impacto e acelerar decisões em torno das questões que mais afetam o equilíbrio entre humanos, animais e ambiente. Mais do que um sonho, é uma missão: ajudar a transformar o conceito One Health em prática diária, nas políticas, nas empresas e na forma como todos comunicamos saúde.

Como podemos, individualmente e coletivamente, contribuir para uma saúde mais integrada e sustentável?
Tudo começa com consciência, individual e coletiva, de que cada ação tem uma consequência. Precisamos de recuperar a capacidade de pausar, refletir e antecipar, em vez de apenas reagir aos problemas quando eles já se manifestaram. O conceito One Health vai muito além da sustentabilidade. Implica introspeção, cooperação e compromisso contínuo, porque cuidar da saúde global exige processos complexos e decisões corajosas. Mas o benefício de o alcançar é imensurável: garantir o equilíbrio do planeta e o futuro das próximas gerações. No fundo, não é apenas um objetivo, é a única direção possível.




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