Cardiopatias Congénitas

Entrevista a Fátima F. Pinto, Professora auxiliar da NOVA Medical School – FCM

Por Sandra M. Pinto

O coração simboliza a vida, os afectos, o âmago da existência do ser humano

Quando associado a uma doença representa uma centralidade que tem uma conotação fatal. No caso das cardiopatias congénitas em crianças, gera na parentalidade uma incerteza e revela sentimentos de impotência e insegurança.

O que são e o que dá origem às cardiopatias congénitas?

Cardiopatias congénitas são anomalias do coração e/ou das grandes artérias, que ocorrem por erros no desenvolvimento embrionário do coração, ou seja, no início da vida fetal, quando o coração está em formação, esta pode ser defeituosa. O coração forma-se nas primeiras oito se manas de gravidez, nesta fase, devido a múltiplos factores, ambiente, genéticos, tóxicos, entre outros, o desenvolvimento normal cardíaco pode ficar alterado. Estes factores são ainda desconhecidos na sua totalidade, pelo que é impossível controlá-los e preveni-los. Importa, no entanto, saber que são anomalias raras, ocorrendo em todo o mundo com incidências idênticas: cerca de 1% de todos os recém-nascidos que nascem vivos.

Que tipos de cardiopatias congénitas existem, e quais são as mais comuns?

O coração começa a formar-se a partir de uma forma tubular simples, sofrendo ao longo do desenvolvimento do embrião uma série de processos que culminam num órgão com quatro cavidades, duas que recebem sangue vindo do organismo e do pulmão (as aurículas) e duas que bombeiam o sangue para o pulmão e para todo o organismo pela aorta (os ventrículos). Estas cavidades encontram-se septadas por tabiques (septos), de modo a não permitir mistura das circulações e separadas por válvulas que asseguram que o fluxo sanguíneo ocorre no sentido correcto e não reflui. Este processo complexo do desenvolvimento cardíaco pode sofrer erros em qualquer fase, assim pode dizer-se que todas as anomalias são possíveis, desde que compatíveis com a vida do feto, embora possam, por vezes, ser incompatíveis com a vida após o nascimento.

Felizmente, as mais frequentes são as mais simples e nem sempre necessitam de tratamento. Podem ocorrer defeitos na septação das cavidades e aí temos comunicações entre as aurículas ou os ventrículos, podem ocorrer apertos ou desenvolvimento insuficiente das válvulas que separam as cavidades, ou estas das artérias, podem persistir vasos anómalos, como o canal arterial ou apertos em artérias, como na coarctação da aorta. Mais raramente ocorrem anomalias mais complexas, com múltiplos defeitos, que, apesar de serem compatíveis com a vida fetal, não o são depois do nascimento, pelo que requerem tratamento especializado e urgente nos primeiros dias de vida, como a tetralogia de Fallot, a transposição das grandes artérias ou o coração univentricular.

Imaginemos que era detectada uma cardiopatia congénita num feto. É possível tratá-lo antes mesmo de nascer?

Ainda não, pelo menos de forma consistente e não experimental. Acredito que as evoluções técnicas da medicina no futuro venham a permitir, de forma sustentada, segura e eficaz fazer tratamentos e intervenções ao coração fetal. A excepção a este conceito são alterações do ritmo do coração fetal (quer ritmos acelerados, quer lentos), que, por ocorrerem nesta fase, também são alterações congénitas e podem e devem ser tratadas no feto.

Quais os tratamentos?

Os defeitos congénitos quando necessitam de tratamento requerem a sua reparação de forma a normalizar a estrutura e a função do coração. Assim, são corrigidos por cirurgia cardíaca ou, em casos seleccionados, por cateterismo cardíaco de intervenção.

A grande maioria das cardiopatias congénitas consegue ser corrigida cirurgicamente. Por vezes nas formas mais complexas, esta correcção tem de ser planeada e faseada, sendo o doente submetido a várias intervenções, de modo a obter o melhor resultado final. A intervenção por cateterismo é, hoje, efectuada em várias anomalias e permite, através da introdução de sondas (cateteres) nas artérias e veias, realizar uma série de procedimentos, como o encerramento de comunicações entre as aurículas, a oclusão de vasos anormais, a dilatação de válvulas ou vasos apertados, e até a implantação de próteses que substituem válvulas anómalas.

Que condicionantes as cardiopatias congénitas trazem ao recém-nascido?

Apenas as cardiopatias complexas e graves são sintomáticas nesta idade. São as mais raras e neste caso os sintomas geralmente obrigam ao internamento do recém-nascido num serviço especializado, onde são submetidos a exames de diagnóstico, a terapêutica médica e a intervenção por cateterismo, se necessário com a finalidade de estabilizar e preparar o melhor possível o bebé para realizar o tratamento definitivo, em geral a cirurgia cardíaca.

Ao nível da intervenção cirúrgica, pode ela ser realizada em doentes tão jovens?

Sim, pode ser efectuada em recém-nascidos. Com segurança, realizam-se cirurgias correctivas a partir dos 2 kg de peso, mas o baixo peso e a prematuridade acrescentam gravidade e complexidade à intervenção e prejudicam o resultado final. Também se realizam procedimentos cirúrgicos mais simples em recém-nascidos prematuros, é o caso da necessidade de encerramento do canal arterial, um vaso que é fundamental no feto, por permitir a passagem de fluxo entre a artéria pulmonar e a aorta, e que deve encerrar espontaneamente após o nascimento. Quando tal não acontece, causa sintomas de insuficiência cardíaca no prematuro, com repercussões na função respiratória e em outros órgãos vitais, sendo necessário intervir, o que é feito por cirurgia cardíaca, quando a tentativa de encerramento por medicamentos falha.

Essa célere intervenção possibilita uma evolução fisiológica normal da criança?

Sim, quando a correcção é eficaz e realizada sem complicações. Na realidade, é esse o grande objectivo dos tratamentos destas anomalias.

Numa situação de intervenção cirúrgica há a separação da criança da família, da mãe, porque tal implica internamento. De que forma deverá ser encarada esta realidade? Aqui é muito importante o papel desempenhado pelos médicos e enfermeiros, certo?

Durante o internamento de qualquer criança, esta é acompanhada, sempre que possível, pelos pais. É claro que, durante as intervenções e por períodos no pós-operatório imediato, não é possível este acompanhamento, o que condiciona a separação que refere, e que é sempre muito “sentida” pelos progenitores.

A notícia de que uma criança sofre de uma anomalia cardíaca acarreta sempre sentimentos de receio, de incompreensão, injustiça e muitas vezes de culpabilidade. Compete a toda a equipa que assiste o doente desmitificar, com realismo e rigor, a situação clínica, os riscos, as necessidades de diagnóstico e de tratamento, as possíveis complicações, o que se espera do futuro.

Outro aspecto que é fundamental esclarecer rapidamente é que estas crianças são doentes que vão necessitar de acompanhamento especializado para sempre, e que podem ser necessários novos tratamentos e exames no futuro. Os pais devem ser sensibilizados a encarar “um dia de cada vez” e a acreditar que vamos estar empenhados e disponíveis para solucionar todos os problemas que ocorram.

Não deve ser fácil para um progenitor ouvir este diagnóstico, mas será o diagnóstico de cardiopatia congénita uma “sentença de morte”? Qual a taxa de sobrevivência?

Essa é uma questão muito pertinente, porque a doença cardíaca associa-se a uma sensação de perigo e morte iminente, já que o coração é um símbolo de vida. A grande maioria dos defeitos cardíacos congénitos pode, hoje, ser reparada definitivamente, ou pelo menos melhorada, reduzindo a sintomatologia. A taxa de sobrevivência global é de cerca de 92 a 95%, no entanto, e como já referi, as anomalias mais frequentes são facilmente tratáveis em centros com grande experiência com taxas de sobrevida próximas de 100%. Importa referir que, nesta área, o estado de Portugal é da mais elevada competência e níveis de excelência com resultados equiparados aos dos melhores centros internacionais.

A constatação de que “o meu filho tem um defeito no coração” gera que tipo de reacções e sentimentos nos pais?

Os mais generalizados são a culpabilização e o receio. Estes estendem-se ao filho com a anomalia e aos eventuais que poderiam ter no futuro, sendo frequente estes pais recusarem-se a ter mais filhos.

O foco de todas as atenções da família desloca-se para o filho com problemas, o que condiciona o relacionamento, quer com outros filhos, quer entre os pais. Por vezes, sentem-se tão decepcionados e zangados, que transferem agressividade para a equipa de saúde. O importante é compreenderem que estamos disponíveis para ajudar e apoiar quando necessitarem.

Como deve a família encarar a doença e que apoios lhe devem ser prestados?

Com a serenidade possível, com confiança na equipa que trata o doente, e com apoios familiares mais alargados. A equipa deve disponibilizar toda a informação relativa a direitos e apoios institucionais aos doentes e suas famílias e colaborar na sua concretização. Manter um ambiente desanuviado e divertido pode ajudar, mesmo nas piores circunstâncias, a manter o equilíbrio necessário. Não posso deixar de referir a importância que reveste o apoio de entidades que são nossos parceiros e nos apoiam diariamente melhorando dia-a-dia destes doentes e das suas famílias. São disso exemplo a Missão Sorriso, com os palhaços doutores; a Terra dos Sonhos; a Make-a-Wish e as “Ligas de Amigos” dos diversos hospitais.

A que sinais devem os pais estar atentos e de que forma devem agir perante a desconfiança de que algo não está bem?

Não vou especificar nenhum sintoma nem sinal. De uma forma geral sempre que os pais notarem alguma alteração ou dúvida sobre a saúde do seu filho, devem recorrer ao seu médico pediatra ou de família assistente e expor as suas dúvidas. Estes estão suficientemente bem treinados para detectar sinais sugestivos de doença cardíaca e, nessa circunstância, sabem como devem referenciar a criança, solicitando a observação electiva ou urgente a um serviço especializado.

Artigo publicado na revista Kids Marketeer nº4 de Junho de 2018.

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