No coração do Porto, na icónica Rua das Flores, espera-se a abertura da primeira unidade da Kodawari, e já se faz notar um detalhe especial que funde tradição e contemporaneidade — um mural de azulejos criado pela artista Mariana, conhecida como A Miserável.
Inaugurado simbolicamente no Dia Nacional do Azulejo, o painel celebra não só um dos elementos mais marcantes do imaginário visual português, mas também o descanso, o sono e as histórias que se desenham entre lençóis e sonhos. Composto por um padrão de camas habitadas por figuras delicadas e expressivas, o mural é uma homenagem poética à calma que a Kodawari quer oferecer a cada hóspede.
Nesta conversa com Mariana, mergulhamos no processo criativo por trás desta obra singular, na relação entre arte e património, e na forma como os azulejos continuam a ser, hoje, um suporte para novas narrativas visuais.
Mariana vê neste painel não só uma extensão natural da sua linguagem — delicada, narrativa e poética — mas também uma forma de contribuir para a reinvenção do azulejo enquanto suporte artístico contemporâneo.
Leia a entrevista na íntegra:
Como surgiu o ideia/convite para criar o mural da Kodawari e como se desenvolveu o processo inicial?
Fui convidada para criar um painel de azulejos para a recepção da Kodawari, no qual idealmente estivesse implícito o conceito de sono, sonhos e descanso, para ir de encontro ao posicionamento do hotel.
De que forma o tema do sono se relaciona com o conceito do hotel e com a tua linguagem artística?
Nada melhor para representar o conceito do sono que a cama, que era só por si, um elemento muito presente nos meus desenhos praticamente desde que comecei. Quis trazer o elemento da cama para este projecto porque faz todo sentido para mim e para o hotel.
Cada cama conta uma história diferente. Podes partilhar uma ou duas dessas histórias que imaginaste ao desenhá-las?
Dormir é um acto íntimo e uma experiência diferente para cada um, eu quis explorar um pouco essa individualidade no desenho. Há quem durma de barriga para baixo, há quem ocupe a cama toda, há quem fique com os pés de fora, há quem abrace almofadas, há quem seja romântico durante o sono, há quem prefira dormir sem lençol, há quem descanse a olhar para o teto.
O mural tem cerca de dois por quatro metros. Que desafios encontraste ao trabalhar nesta escala e neste suporte específico?
Embora já tivesse alguma experiência prévia a trabalhar com azulejos e conhecesse os desafios técnicos que este suporte impõe, a dimensão do painel obrigou a procurar uma solução mais estruturada. Assim, o desenho original foi executado em azulejo pela Fábrica Viúva Lamego, a partir do meu traço. Foi um privilégio poder colaborar com uma instituição com tanto prestígio e história na cerâmica portuguesa. É a mesma fábrica onde trabalharam alguns dos maiores nomes da arte em Portugal, e foi com orgulho que vi a minha obra ganhar forma nas suas mãos. O processo, apesar de minucioso, foi surpreendentemente fluido. Desde a escolha das cores ao rigor do traço manual, houve sempre um enorme respeito pela linguagem original do desenho, ao ponto de parecer que fui eu própria a pintar cada peça. Ver a obra ganhar escala e materialidade num suporte tão emblemático foi, sem dúvida, um dos momentos mais marcantes deste projeto.
Disseste que queres que, a cada novo olhar, o observador descubra algo diferente. Há elementos ou pormenores escondidos na tua obra, colocados propositadamente para o efeito?
O que quis dizer é que são tantas camas e todas diferentes que vai acabar por acontecer um bocado aquele efeito dos livros “onde está o wally?” de haver um elemento novo a cada olhar. O meu elemento favorito são uns chinelos pequeninos.
Consideras que o uso contemporâneo do azulejo na arte urbana pode ajudar a preservar ou reinventar este património?
Considero que o renovado interesse no azulejo, em integrá-lo não só em projetos artísticos, mas novamente na arquitetura, principalmente em obra pública, vai criar uma consciência de preservação do património, incluindo os azulejos antigos que existem nas fachadas dos edifícios devolutos, ou em renovação, por exemplo. Ainda vamos a tempo de valorizar mais o que temos.
Há alguma referência histórica portuguesa que te inspire especialmente?
Maria Keil, Querubim Lapa, Júlio Resende.
O traço delicado e a expressão narrativa são marcas tuas. Como definiste o equilíbrio entre o estilo pessoal e a linguagem estética do espaço Kodawari?
Eu tenho a sorte de ter um estilo muito específico e, quando sou abordada para desenvolver uma proposta, já existe (da parte do cliente) uma ideia de que aquele projecto se adequa ao que faço, embora por vezes aconteçam alterações durante o processo, nunca senti que tive de abdicar da minha linguagem. Neste caso, só veio acrescentar camadas à estética e ao conceito da Kodawari.
O humor e a poesia visual são assinaturas tuas. Como usaste esses elementos neste painel especificamente?
Neste painel, essa poesia visual está presente na vulnerabilidade de cada momento de descanso representado, normalmente não temos acesso ao que se passa nos quartos dos hotéis e eu quis dar essa visão.
Este projeto influenciou de alguma forma a tua forma de pensar futuras obras ou colaborações?
Pensar num projecto para azulejos, principalmente quando se aplica a painéis grandes, muda bastante a forma como componho os elementos e mesmo como os desenhos. Gosto de pensar que cada painel tem um impacto específico no lugar que ocupa e que, aquilo que escolho incluir, vai influenciar o espírito daquele lugar. Todos os painéis que tenho feito, são uma oportunidade para experimentar ideias novas, neste caso, consegui experimentar o efeito padrão, que funciona pela dimensão da parede que me cederam.